A petite-histoire que vou contar passou-se há pouco tempo e faz parte daqueles momentos na vida em que, uma coisa que parece à partida não ter qualquer importância, se transforma na minha cabeça de escritora no símbolo representativo de algo mais profundo.
Foi numa sexta-feira à noite, no restaurante da moda. Enquanto esperava que a minha companhia chegasse, atravessei a sala para cumprimentar alguns amigos. Ao passar ao lado de uma mesa onde estavam dois casais, reconheci um gestor de sucesso da nossa praça. A mulher dele estava a passar-lhe o prato com o bife cortado aos bocadinhos. Durante segundos, que foram impercetíveis para o resto da sala e marcantes para a minha observação do mundo e subsequente perplexidade, quis confirmar o que estava a ver. Era mesmo verdade, a mulher cortara o bife em pedacinhos, como fazemos aos nossos filhos quando são ainda pequenos. A isto chama-se, em português mais popular e vernáculo, ter a papinha feita.
Vamos recapitular todo o quadro para ver se consigo fazer-me entender: o gestor e a sua dedicada esposa não estavam em casa, na intimidade do lar, nem tão pouco o poderoso homem que move montanhas e gere milhões estava, pelo menos aparentemente, impossibilitado de pegar na faca e no garfo para cortar o seu próprio bife. Não observei qualquer vestígio de uma fratura exposta, nem de um pulso aberto numa partida de ténis mais puxada, ou resultado de uma queda fortuita. Também pode dar-se o caso de existir uma tendinite, maleita não visível, e perante tal hipótese, o caso muda de figura. Não perguntei, portanto nunca saberei.
A mulher deste poderoso gestor é inteligente, chique, atraente. Imagino que passem bastante tempo a conversar sobre política, economia, arte, que viajem pelo mundo, que visitem museus e assistam a concertos em Berlim e a peças de teatro em Londres, se deleitem com fins de semana românticos no Lago de Como e lânguidas caminhadas na High Line em Nova Iorque. Juntos, formam um casal interessante. Mas, se calhar, o que no fundo os une é ela cortar-lhe o bife. Cuidar dele e mimá-lo como se fosse um menino pequenino, fazer de mãezinha quando ele chega a casa, esgotado do trabalho, coitadinho.
É verdade que o território doméstico sempre foi o reino das mulheres. Foi e é ali que elas sempre amamentaram os filhos, cuidaram dos pais, cozinharam, arrumaram, estenderam a roupa, cultivaram a horta e colheram os frutos das árvores. Nesse lugar exíguo e circunscrito que é o seu pequeno mundo, embelezaram-se e aborreceram-se enquanto esperavam com paciência e virtude o regresso do herói. Os homens iam e vinham, tinham de caçar e de lutar, a guerra sempre fez parte do universo masculino. É então natural e razoável que Ulisses procure conforto, o carinho e atenção da esposa dedicada. É o merecido descanso do guerreiro. Mas daí a cortar-lhe o bife…
Uma das grandes pragas herdadas do Salazarismo foi o culto da mulher submissa que não devia aborrecer o marido quando ele chegasse a casa, seguindo a tríade infernal do regime, Deus, Pátria e Família. Com a criação da figura do Chefe de família, era ele a cabeça da casa e a mulher, o coração. A sua obrigação da esposa amantíssima era proporcionar ao marido tudo, sem questionar nada. Tais ideias machistas eram transmitidas a preto e branco na televisão. Como nasci antes do 25 de Abril, ainda assisti a estes disparates.
Esta mania de cortar o bife os maridos e de os tratar como filhos é uma coisa que não me entra na cabeça. É como aquelas mulheres que já passaram dos 40, com os filhos no secundário, que teimam em usar colónias vendidas em embalagens gigantes de plástico que mais parecem de amaciadores para roupa delicada. Nada contra as Denenes, como lhes chamo, das quais usei e abusei durante a minha juventude e adolescência tardia, quando ainda não era mãe e aos poucos me fazia mulher. Será que uma mulher não pensa que ao perfumar a sua pele com o mesmo cheiro da pele dos filhos, isso lhe retira sensualidade? Qual é o homem com desejo de fazer sexo oral a uma mulher que tem na pele o mesmo cheiro dos filhos que embala à noite no berço? Uma coisa é ter pele que cheira a bebé, outra é a pele ter o mesmo cheiro dos bebés da casa.
Voltemos ao bife cortado, que foi para mim uma visão do demo, não pela simpatia do gesto me parece adorável, mas por tudo aquilo que representa, tendinites aparte. Uma mulher pode amar profundamente um homem, ajudá-lo a tomar decisões profissionais, fazer-lhe uma massagem quando ele chega exausto depois de um dia de cão no escritório, pode até comprar iogurtes gregos e os frutos secos do que ele mais gosta, cortar-lhe o bife é que não.
É como falar à bebé, fazer beicinho, bater com o pé, encenar birras e amuar. Existe uma grande diferença entre um guerreiro que precisa de carinho e um homem que se torna se torna abebezado no seio do lar e faz da mulher uma progenitora cuidadora. Pessoal casado, junto, ou afins, por favor não alimentem esse tipo de relação que confunde os papéis. Uma mãe é uma mãe, uma mulher é uma mulher. Enquanto as mulheres continuarem a tratar os maridos como filhos e os homens continuarem a pensar como é bom ter uma mulher que faz mãezinha, nunca mais andamos para a frente. De que nos serve incentivar as raparigas a serem independentes e a terem carreiras de sucesso, se em casa elas virem a mãe a cortar o bife ao pai? O mais provável é que acabem a cortar o bife a um palerma qualquer.
Uma coisa é cuidar, outra coisa é servir e ser subserviente. Uma coisa é mimar, outra é tratar um homem com mais um filho.
Mulheres de Portugal, por favor parem de cortar os bifes em bocadinhos aos vossos maridos, a não ser que eles estejam acamados e tenham partido os dois braços. Não se deixem embarcar na armadilha da esposa submissa que tudo faz para agradar. Não há nada mais fácil de criar numa relação do que maus hábitos. Com o tempo uma pessoa habitua-se a coisas intoleráveis, e quando dá por isso, já não é a mesma pessoa. Claro que a teoria cai por terra se um dos dois estiver com um tendinite. Nesse caso, o outro corta-lhe o bife, não só por amor e carinho, mas porque o outro não consegue.
Não é preciso ler Shophenauer nem Nietzsche para perceber isto. É apenas uma questão de bom senso.
Tenho dito. Para a semana há mais.