É um daqueles acontecimentos que abalam os pilares da civilização. Ou que, pelo menos, os deixam fora de sítio: Marie Kondo, guru das arrumações, desistiu de arrumar. Há quem fique de luto quando o seu craque favorito pendura as botas, eu fico desolada por saber que Marie Kondo não mais arrumará as botas. Sinto-me enganada. Segui religiosamente as regras do livro Arrume a Sua Casa, Arrume a Sua Vida para agora Marie vir assumir que tem a casa desarrumada e está feliz na mesma? Isso quer dizer que não há uma relação directa entre o nível de desmazelo e a infelicidade? O que faço com este livro, agora? Volto a pô-lo na estante impecavelmente arrumada por ordem alfabética e degradé de lombadas? Deito fora? E, nesse caso, no contentor azul ou, entretanto, o Gervásio, chimpanzé da Sociedade Ponto Verde, também já veio dizer que desistiu da reciclagem e mais vale misturar o lixo todo à balda? “A fórmula é simples”, escrevia Kondo, “espaços desarrumados causam infelicidade, espaços arrumados resultam numa vida bonita e arrumada”. As próximas edições têm de sair com uma errata, em letras garrafais: “AFINAL NÃO.”
Quem nos devolve o tempo desperdiçado a dobrar camisolas em forma de envelope? Exijo indemnização de valor igual ou superior ao das tralhas que deitei fora, persuadida por esta organizadora profissional. Faz-me tanta falta o meu velhinho tamagotchi. Ora aí está uma invenção japonesa que não me desgraçou a vida, ao contrário do método KonMari, segundo o qual tínhamos de avaliar o que cada objecto nos fazia sentir, e decidir se era digno de ficar em nossa casa. Há aqueles líderes de seitas que convencem os seus seguidores a alinhar num suicídio colectivo, Marie convenceu-nos a atirar da janela uma data de objectos que adoraríamos ter de volta. A guru da arrumação foi mãe pela terceira vez e abdicou de ter a casa impecável. Resta saber como é que fez com os dois primeiros filhos. Provavelmente também os dobrou em forma de envelope. Deve ser isto que sentem aqueles que acreditam no amor, quando um qualquer casal famoso se divorcia. Eu ainda acreditava na arrumação. Tinha fé de um dia vir a conseguir, como a Marie. Pensava eu. Agora tudo ruiu. Inclusive aqueles 27 casacos que tinha deixado no cadeirão do quarto, à espera do tal dia em que uma força imensa tomaria conta de mim, e eu tomaria conta da ocorrência. Isto é o equivalente a ouvir Cesar Millan, o encantador de cães, admitir que afinal é melhor os cachorros fazerem o que lhes dá na gana e comerem às horas que querem, mesmo que seja o nosso jantar. Tenho esperança de que isto não passe de um mal-entendido. Marie Kondo tem todo o ar de ser daquelas pessoas que, ao receberem visitas, pedem desculpa por terem a casa toda desarrumada, perante o olhar incrédulo de quem vê uma sala aparentemente pronta para uma sessão fotográfica da Casa Cláudia. Para Marie, desarrumação deve ser não encontrar uma peça de Lego dos filhos. Para mim é não encontrar os meus filhos, debaixo de tanto Lego.
A renúncia de Marie Kondo. Crónica de Joana Marques

Há aqueles líderes de seitas que convencem os seus seguidores a alinhar num suicídio colectivo, Marie convenceu-nos a atirar da janela uma data de objectos que adoraríamos ter de volta