Preocupações de um actor nos primeiros anos do século XXI: estudar o texto, ensaiar com os colegas, não ter uma branca, conseguir pagar as contas no fim do mês. Preocupações de um actor nos primeiros dias de 2023: estudar o texto, ensaiar com os colegas, não ter uma branca, conseguir pagar as contas no fim do mês, rezar para que não apareça alguém a reivindicar o seu papel durante a peça. Aconteceu na última semana, na peça Tudo sobre a minha mãe, em Lisboa. A actriz trans Keyla Brasil fez jus ao nome e trouxe um cheirinho a invasão do Planalto ao Teatro São Luiz. Os fins justificam os meios, dirão os bolsonaristas que vandalizaram a Câmara dos Deputados em Brasília, por não aceitarem o Presidente eleito, e dirá Keyla Brasil, e os seus colegas activistas, descontentes com os nomes do elenco. Felizmente, a deposição de Lula, exigida pelos seus patrícios, não foi tão célere como a substituição do actor André Patrício, que, no dia seguinte, já não encarnou Lola. Keyla teve pouco sentido de oportunidade. De todas as oportunidades em que faria sentido falar da falta de oportunidades para os artistas trans, escolheu talvez a pior. Para se queixar do ostracismo a que são votados todos os actores trans, escolheu uma peça com uma actriz trans. Para se queixar da falta de narrativas trans, deixou a meio uma narrativa trans. Keyla dirigiu-se de modo agressivo a André Patrício, exigindo-lhe “respeito”, enquanto lhe faltava ao respeito, fazendo lembrar aquelas pessoas que vociferam “Eu estou calmo!”, enquanto esbracejam. A actriz (trans) indignou-se com o actor (cis), esquecendo que o público, a única coisa que põe entre parêntesis, depois do nome de um actor, é “talentoso” ou “canastrão”. Os organizadores dizem que a natureza do protesto é justificada pelo sofrimento a que estão sujeitas as pessoas trans. Também Will Smith alegou o sofrimento da mulher, para agredir Chris Rock durante os Oscars. Pareceu-nos absurdo e condenável. E continuaria a sê-lo, se fosse uma mulher trans. Keyla exigiu ao actor que tivesse ética e não voltasse àquele lugar no dia seguinte. Ou seja, a ética profissional exigida a André Patrício é faltar ao trabalho – um sonho, para milhares de portugueses. Keyla diz ser prostituta, por não ter espaço no teatro, naquilo que parece ser um salto lógico mais arriscado do que pular para cima do palco (coisa que se revelou assustadoramente fácil). O único desfecho feliz para isto seria descobrir que esta era uma brilhante medida do Ministério da Cultura para dar emprego a mais actores (todos os dias pode rodar, tipo estafeta) e levar mais espectadores ao teatro. Agora que se sabe que é possível (e recomendável) que actores frustrados mandem calar os colegas que estão em cena, as vendas de bilhetes vão disparar. É uma espécie de “pague 1, leve 2”. A possibilidade de haver pancada em Molière vai atrair muito público.
Pancada em Molière. Crónica de Joana Marques

Agora que se sabe que é possível (e recomendável) que actores frustrados mandem calar os colegas que estão em cena, as vendas de bilhetes vão disparar. É uma espécie de “pague 1, leve 2”. A possibilidade de haver pancada em Molière vai atrair muito público