Eu, pecadora, me confesso: tenho algumas reservas a respeito do Cristianismo. Não me refiro à doutrina de Cristo, mas àquela outra religião monoteísta que tem como deus Cristiano Ronaldo. É terreno perigoso, este que piso, porque se os adoradores de Cristo estão, por estes dias, desmoralizados, os fãs de CR7 estão sempre, e como o próprio, cheios de moral, e pouco tolerantes a infiéis que não adorem o Senhor. Se alguém ousa criticar CR7 é imediatamente rotulado como fã de Messi, enquanto que quem não é cristão não é acusado de adorar Buda. Deixo, por isso, claro, que reconheço todas as virtudes de Cristiano, mas não é por isso que deixo de lhe ver os defeitos. E nalguns casos o defeito não é dele, mas de quem o endeusou. Uma coisa é depositar fé em Ronaldo para resolver um Portugal-Suécia, outra é acreditar que ele é omnipotente. O próprio Ronaldo parece ter-se convencido de que pode tudo, até perceber, com espanto, que não podia fazer uma simples marquise. Não é por se ser um avançado de renome que se pode fazer um avançado sem autorização. Lá porque está habituado a não passar a bola aos colegas, não significa que não passe cavaco às autoridades camarárias. Percebo que o homem a quem já ergueram uma estátua, tenha dificuldade em perceber que não pode erguer o que quiser, onde bem lhe apetecer (e nem me refiro ao que se passou em Las Vegas); é natural que alguém que tem um aeroporto baptizado em sua homenagem deixe que a fama lhe suba à cabeça. Humberto Delgado, se fosse vivo, também seria insuportável, de certeza. Provavelmente passaria de General Sem Medo a General Sem Noção, da mesma forma que Cristiano passou de “puto maravilha” a “oitava maravilha, que fica puto se não fazem o que ele quer”. A trajectória de Ronaldo será sempre impressionante: o rapaz que veio do nada e conquistou tudo. Mas gostava que ainda fôssemos a tempo de alterar o rumo dos acontecimentos, porque, passar de miúdo da família mais humilde da Madeira a homem menos humilde do mundo, não é o final feliz que esta história merece. Cristiano Ronaldo abandonou, intempestivamente, o banco de suplentes do Manchester United, ainda antes do jogo frente ao Tottenham terminar. O atleta que era conhecido, e louvado, por ser sempre o primeiro a chegar aos treinos e o último a sair, corre agora o risco de ser lembrado como o último a chegar à pré-época e o primeiro a sair enquanto o jogo ainda decorre. Resta dizer que o United venceu por duas bolas a zero, o que parece ser irrelevante para esta história. Durante muitos anos dissemos que Ronaldo era “de outro campeonato”, e agora percebemos que é mesmo. Um campeonato muito próprio, em que títulos colectivos pouco contam, quando comparados com recordes como “marcar mais golos pela Selecção do que um ex-futebolista iraniano, que passou parte da carreira no Persepolis FC”. Ronaldo parece ter créditos ilimitados, aos olhos dos portugueses. Faz lembrar a nossa benevolência para com os políticos que “roubam, mas ao menos fazem!”. Ronaldo também tem obra feita, muitas delas primas, mas será isso motivo para ter um ego maior que o tecto da Capela Sistina?
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