Num tempo em que os portugueses estão cada vez mais afastados da Igreja, o bispo Manuel Linda resolveu tentar uma aproximação: registou-se no Twitter. E rapidamente percebeu que, para ser notado, tinha de ser viral. Bastou afirmar que nunca se deve substituir os laços entre pais e filhos pelo apego a um animal de estimação, para conseguir que as redes sociais, como se diz agora, “pegassem fogo”. E todos sabemos que não há melhor manobra de diversão do que um incêndio. Foi sempre assim que me safei dos pequenos delitos que cometi (nada de grave, nenhum é crime público, e eu tenho a certeza do que digo, ao contrário de Manuel Linda): gritava à porta da mercearia “olhe! Está ali uma coisa a arder!”, e fugia, com os bolsos recheados de gomas. Os meus pais perguntavam-me, preocupados, de onde tinha trazido aquilo, mas pareciam descansados quando eu garantia que não tinha sido da catequese. Manuel Linda, o mesmo que não se lembra do pedido de ajuda que lhe foi feito por uma vítima de 12 anos, recorda o dia em que, com choque, viu dois cães a serem passeados em carrinhos de bebé. À primeira vista parece-nos ter memória selectiva, mas diga-se em sua defesa que há mais notícias sobre abuso de menores no seio da igreja do que avistamento de cãezinhos a serem transportados em carrinhos da Zippy. Acho que entra na categoria “porco a andar de bicicleta” ou, como o bispo do Porto prefere dizer, “queda de meteorito na cidade do Porto”.
Foi aludindo a este cenário altamente improvável que Manuel Linda se mostrou desfavorável à criação de uma comissão independente para “dar voz ao silêncio” de todos aqueles que foram abusados em criança. Percebo que o silêncio fosse mais confortável. Sobretudo o do próprio Manuel Linda, que desde então só tem aberto a boca para dizer as maiores enormidades. Eu até pertenço ao grupo de pessoas que acha bizarro que se tratem cães e gatos como filhos, mas creio que o bispo devia focar-se menos em quem dorme com pastores-alemães, e mais em com quem dormem os pastores das paróquias. Falar em “sociedade decadente”, a respeito de gente que alimenta os cães com garfo e faca, numa semana em que o tema dominante é o mais repugnante de todos, é mais ou menos como dizer “sim, sim, chegam-nos imagens terríveis da Ucrânia, mas vocês já viram como a Cristina Ferreira se apresentou no Cristina Talks?”. Esta tendência de pôr todos os assuntos ao mesmo nível é notória, de resto, no texto de Linda sobre os animais. É que o bispo começa por contar a história comovente de uma criança de seis anos que sobreviveu a uma leucemia, e alguns parágrafos abaixo escreve: “mas aquele era um dia talhado para emoções”, descrevendo o que sentiu ao espreitar para os carrinhos de bebé ocupados por cachorros. Sem dúvida, acontecimentos equiparáveis. Não surpreende, vindo do homem que, ao falar do esforço da Igreja para evitar novos casos de pedofilia, avisou: “mesmo assim é possível que alguém volte a fazer asneiras”. Asneiras?! Asneira era roubar gomas na mercearia do Sr. João (e ainda assim peço desculpa).
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.