Portugal carimbou a passagem ao Mundial 2022 com o precioso contributo de dois atletas cuja documentação foi carimbada pela conservatória dos registos centrais, tornando-se portugueses de pleno direito: Otávio (baptizado sem C, num acordo ortográfico avant la lettre) e Matheus Nunes (assim mesmo, com H, a lembrar que nasceu no Rio). Não comemorei os “gols” destes dois frente à Turquia por serem um rude golpe nas aspirações do “time” turco, mas por serem uma chapada de luva branca nos portugueses antigos que olham para estes portugueses recentes com desdém. Não me interessa se eles batem escanteio ou pontapé de canto, desde que a bola vá tensa e surja ao primeiro poste um jogador a facturar, seja central ou zagueiro. Se me falam de portugueses de primeira e de segunda, assumo que se referem à divisão em que jogam, e aí concordo que é mais avisado convocar atletas dos principais escalões. Há quem se choque por ver gente que veio ao mundo em Paraíba ir ao mundial com as cores de Portugal. Não me choca que Otávio conheça melhor o município de João Pessoa do que a obra de Fernando Pessoa, embora seja a favor de umas récitas de poesia para o plantel. Mas para todos, tenham nascido em Penafiel, Funchal ou Maceió.
Nem a rainha de Inglaterra liga tanto à questão do berço como certos taberneiros que desdenham de Pepe só porque se chama Kléber e aprecia paçoca. Isto torna-se mais absurdo ainda quando os 11 jogadores que temos em campo são autênticos cidadãos do mundo, moradores de Manchester, munícipes de Paris, algarvios que bebem mate argentino antes do jogo e transmontanos que dançam funk carioca no fim (se correr bem; quando corre mal, reproduzem cenas do Parlamento de Taiwan). Esta resistência em aceitar a convocatória de atletas naturalizados parece partir da ideia de que ser português é ter um estatuto superior, que devia ser inalcançável. Algo que não é para quem quer, é para quem pode. Sendo que nós, portugueses de gema, nem sequer quisemos sê-lo. Aconteceu-nos. Foi o destino, é o nosso fado (vêem? Tenho portugalidade a sair-me pelos poros, convoquem-me já!). Não tivemos de nos esforçar para sermos portugueses, só houve sangue, suor e lágrimas porque, enfim, foi através de um parto que obtivemos a nacionalidade. Já Matheus, Otávio e milhares de outros estrangeiros tiveram de enfrentar a temível burocracia portuguesa, dobrar o cabo das tormentas da loja do cidadão, e mesmo assim não desistiram de nós. Mais: nós tornámo-nos portugueses sem saber ler nem escrever, enquanto eles, tendo já lido o livro de encargos, resolveram ser portugueses na mesma. Se, numa altura em que estamos na iminência de uma terceira guerra mundial, se sentem em condições de dispensar soldados como Pepe ou Otávio, é convosco. Eu cá sugiro a naturalização imediata de Taarabt. Nota para quem só vê futebol quando joga Portugal: eu depois explico.
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