O problema de considerar que tudo é gravíssimo é que isso faz com que nada seja gravíssimo. O que é gravíssimo. Não sei se me faço entender. É provável que não. Deixem-me dar exemplos. Uma vez, o presidente da Assembleia da República sentiu necessidade de repreender um deputado porque este usava “a palavra vergonha e vergonhoso com demasiada facilidade”, o que ofendia todo o Parlamento. Quando o deputado alegou que a liberdade de expressão lhe permitia dizer o que havia dito, a segunda figura do Estado respondeu: “Não há liberdade de expressão quando se ultrapassa a liberdade de expressão dos outros.” Ninguém entendeu o significado desta frase, provavelmente porque ela não tem significado nenhum: o facto de o deputado usar a palavra “vergonha” com muita frequência não ultrapassava a liberdade de expressão de ninguém. Também não ficou claro qual era a frequência admissível para o uso da palavra “vergonha”, nem a razão pela qual ofender o Parlamento, apesar de desagradável, haveria de ser inadmissível. As opiniões são várias vezes desagradáveis, e é precisamente por isso que a liberdade de expressão existe. Para exprimir opiniões agradáveis ninguém precisa de licença.
Na semana passada, o mesmo presidente da Assembleia da República estava a almoçar num restaurante quando uma turba se aglomerou à porta. Alguns energúmenos, munidos de um megafone, gritaram calúnias e ameaças, e no fim a segunda figura do Estado teve de ser escoltada até ao carro. Para perplexidade de todos, Ferro Rodrigues não apresentou queixa. Incitar magotes furiosos contra uma pessoa a escassos metros do sítio em que ela se encontra é um daqueles casos clássicos que extravasam os limites da liberdade de expressão. É dos livros. Literalmente. Está no capítulo III do On Liberty, do Stuart Mill. Mas a mesma pessoa que agiu contra a banalíssima expressão de uma opinião resolveu agora não tomar qualquer atitude perante um gravíssimo incentivo à violência.