Em 2019, nunca tínhamos experimentado um confinamento. Em 2021, já passámos por confinamentos suficientes para os organizarmos por ordem de preferência. Creio que existe um consenso generalizado no sentido de considerar que o primeiro confinamento foi superior a este. Mas talvez valha a pena fazer uma análise crítica mais profunda aos confinamentos, para apurar se essa opinião assenta em factos sólidos ou se não passa de uma mera impressão. O facto de termos vagar para empreitadas como “análise crítica de confinamentos” talvez seja uma primeira pista sobre os efeitos que o confinamento produz em nós, e uma razão decisiva para desconfiarmos da nossa capacidade de discernimento.
O primeiro confinamento beneficiou do efeito de novidade e foi recebido com alguma boa disposição. Havia um entusiasmo que, receio bem, a esta distância tem de ser reputado de palerma. Na ânsia de encontrar o lado positivo de uma situação adversa (que é uma operação estimável), algumas pessoas talvez tenham exagerado e desenvolveram um apreço um tanto excessivo por arrumar gavetas, fazer pão e estreitar relações com entes queridos – actividades que, um ano volvido, parecem um pouco menos divertidas.
Arrumar gavetas é irredimivelmente chato, a panificação transmite um sentimento de realização na primeira vez que não encontra paralelo nas vezes seguintes, e estreitar relações com os nossos entes queridos faz com que tenhamos saudades dos momentos insignificantes que passamos com os nossos entes indiferentes.
Do entusiasmo com o pão feito por nós passámos rapidamente à vontade de comer um pão feito por um padeiro que sabe realmente o que está a fazer. Da excitação com a novidade do primeiro confinamento passámos para o profundo aborrecimento com o segundo. Encarámos o primeiro com o espírito positivo de quem vai experimentar o campismo pela primeira vez: é um pouco desconfortável, mas vai ser giro.
Abordamos o segundo com a certeza de que isto é um cativeiro desumano. Estamos rabugentos, fartos e desesperados. Parece-me a reacção mais humana a uma situação desumana. Gosto mais deste.
(Crónica publicada na VISÃO 1459 de 18 de fevereiro)