Tem sido um ano inteiro disto. Depois do confinamento, pudemos voltar a sair, sim, mas com prudência. No verão, o número de infecções baixou, sim, mas havia que manter a prudência. Agora chegou a vacina, sim, mas não é ainda o momento de abandonar a prudência. Eu compreendo a necessidade da prudência, claro, e sou a favor de que seja recomendada. Mas confesso que anseio pelo momento em que um dirigente da área da saúde convoque uma conferência de imprensa para dizer que já podemos comportar-nos sem prudência novamente – e, tal como deu conselhos sobre o comportamento mais correcto, proponha agora ideias para comportamentos insensatos. Tenho fantasiado tanto com o discurso que alinhei umas ideias e gostaria de as oferecer a alguém da Direcção-Geral da Saúde, para quando a altura chegar:
“Caro povo português,
Chegámos finalmente ao momento em que o vírus deixou de ser uma ameaça. Acabou. Basta de metáforas sobre túneis com luz ao fundo. Já saímos do túnel. Esqueçam o túnel. Neste momento há túnel ao fundo da luz. Se olharem para trás ainda conseguirão ver o túnel muito pequenino, lá ao longe. As autoridades de saúde têm agora o prazer de incentivar balbúrdias de todos os tipos. Mas coisas da mais desenfreada libertinagem: jantares, festas em quartos escuros exíguos, convívios em que centenas de pessoas saltam por cima de fogueiras feitas com frascos de álcool gel. Besuntem-se todos com aquelas compotas que o sr. subdirector-geral da saúde recomendou que oferecessem no Natal e esfreguem-se uns nos outros. À confiança. Os meus colegas e eu reunimos esta manhã e deliberámos que estão reunidas condições para a mais lasciva devassidão. Está a valer tudo. Eu que veja alguém de máscara ou a desinfectar as mãos. A GNR tem ordens para deter quem esteja a comportar-se ajuizadamente. Se tiverem conhecimento de que vizinhos, amigos ou familiares estão a evitar ajuntamentos e galderice, não hesitem em denunciá-los. O Governo vai criar uma app para localizar refeições em que não haja pelo menos uma pessoa embriagada e corrigir a situação através da ingestão obrigatória de medronho. Não se esqueçam: protejam a vossa saúde mental e aproveitem para finalmente se divertirem à balda. Por Portugal. Muito obrigado.”
(Crónica publicada na edição 1452 de 31 de Dezembro)