O lindo projecto europeu estima os seguintes valores: a dignidade do ser humano, a liberdade, a democracia, a igualdade, os direitos humanos e o Estado de direito. Há um pequeno problema: alguns dos países que neste momento integram a União Europeia borrifam-se num ou em vários destes valores. E há uma dificuldade adicional: alguns países borrifam-se no facto de outros países se borrifarem nestes valores. Entre os que se borrifam e os que se borrifam no facto de outros se borrifarem, o projecto europeu foi ficando um pouco menos lindo.
Neste momento, coloca-se a questão: há que distribuir dinheiro por todos os membros da UE, por causa da dramática situação económica gerada pela pandemia. No entanto, alguns Estados-membros consideram que os países que se borrifam nos nossos valores não devem receber a “bazuca financeira”. E, então, os que se borrifam estão a determinar que, se eles próprios não recebem, mais ninguém deve receber. É como se, na nossa família, a pessoa a quem dizemos que não tem direito a sobremesa, por não ter comido a sopa, tivesse o poder de impor que, nesse caso, ninguém mais teria direito a sobremesa – mesmo os que comeram a sopa. Portugal é dos países que comeram a sopa mas, perante a iminência de ficar sem sobremesa, prefere que os países que não comem a sopa recebam sobremesa na mesma. Ou seja, é dos que se borrifam no facto de outros se borrifarem. Já que estamos à mesa com os bárbaros, vamos levar a refeição até ao fim. Com um pouco de concentração, conseguiremos abstrair-nos do facto de eles comerem com as mãos, cuspirem para o chão e arrotarem à mesa. A “bazuca financeira” é um exemplo da solidariedade europeia. Se a obtivermos à custa da solidariedade europeia para com os povos que os governos bárbaros oprimem, estaremos a beneficiar de solidariedade à custa de solidariedade. Parece-me evidente que, se há valor ao qual devemos sacrificar a solidariedade, é a solidariedade. O argumento português é o seguinte: não se deve discutir dinheiro e valores ao mesmo tempo. Ou seja, não se fala com a boca cheia de sobremesa. Trata-se de uma ideia irrepreensível. De acordo com a minha experiência, quanto menos se discutem valores, mais dinheiro sobra.