Nesta altura, muitos recordam com saudade os tempos em que a elaboração do Orçamento do Estado se assemelhava ao acto de puxar a manta mais para cima, para tapar a cabeça e destapar os pés, ou de a puxar para baixo, para tapar os pés e destapar a cabeça. Agora, à fragilidade da nossa economia, e ao facto de termos uma dívida demasiado elevada, juntou-se uma crise sanitária sem precedentes – e, por isso, o orçamento deixou de ser uma manta curta e passou a ser um lencinho. Já não é possível optar por tapar uma parte, passando frio na outra. Com o lencinho, a única hipótese é tapar apenas as vergonhas. O problema é que Portugal é um país que tem umas vergonhas bastante grandes, e o lencinho não consegue tapá-las todas.
Há, no entanto, sinais positivos. Normalmente, as centenas de milhões que o orçamento destina ao Novo Banco parecem produto de um erro, mas não são. Desta vez, eram mesmo: estava escrito que o Estado iria injectar 468 milhões no fundo de resolução, mas afinal era engano. Por um lado, sobrevém aos contribuintes aquele alívio que se sente quando, num restaurante, se descobre que a conta que nos apresentam é demasiado elevada porque nos cobraram duas vezes o mesmo prato. Por outro lado, quando nos apresentam uma conta com um erro de 468 milhões, começamos a ficar um bocadinho inquietos para saber se haverá mais dois ou três enganos do mesmo calibre. Talvez seja melhor cotejar o orçamento todo, não vão estar lá duzentas mil imperiais que não foram consumidas, ou trinta milhões de cafés que não chegaram a vir para a mesa.
Segundo os especialistas, o orçamento é optimista no sentido em que se espera que, dentro de tudo o que já correu mal, tudo possa correr bem. É improvável, tendo em conta que isto é Portugal. O universo parece empenhado em aborrecer-nos. A física tem descoberto muitas leis que regem o universo e, no entanto, nunca se dedicou a formular esta, que parece evidente. Depois de anos muito difíceis, Portugal conseguiu começar a respirar um bocadinho melhor por causa do turismo. Pois o universo arranjou maneira de desencadear uma pandemia que ataca com especial crueldade o sector do turismo. Se tivéssemos investido tudo na saúde e na produção de máscaras, aposto que neste momento se respiraria o ar mais puro da história do planeta. Vai-te lixar, universo.
(Crónica publicada na VISÃO 1441 de 15 de outubro)