Quando se soube que havia novamente gente ofendida por causa de um desenho, e a exigir a sua retirada, fui tentar perceber se se tratava de autoritários antigos ou de autoritários modernos. Os autoritários antigos exigem a retirada de desenhos que exprimem valores modernos; os autoritários modernos exigem a retirada de desenhos que exprimem valores antigos. Nem uns nem outros acreditam que as pessoas sejam capazes de ver desenhos sem aderir acriticamente aos valores que eles veiculam. Desta vez, eram autoritários antigos, que pretendiam retirar um episódio de uma série do espaço infantil Zig Zag, da RTP 2, em que um boneco beija outro de forma lesbiana. Alguns segmentos de recta e linhas curvas beijavam outros segmentos de recta e linhas curvas – o que era perigosíssimo, evidentemente. Como sempre acontece quando alguém propõe retiradas no universo infantil, recorri à ajuda da minha filha mais nova. Quando o Estado propôs a retirada dos polémicos blocos de actividades da Porto Editora, confrontei-a com o problema. Depois de examinar os polémicos blocos de actividades, mostrou-se chocada: aquilo não era discriminação de género que se apresentasse. “Comparados com (para dar apenas três exemplos) a Branca de Neve, a Cinderela e a Bela Adormecida, em que se constrói um ideal de mulher doméstica, frágil e incapaz de sobreviver sem a ajuda de um príncipe salvador, os estereótipos contidos nestes blocos são para meninos”, considerou a criança, perpetuando aliás um estereótipo que atribui fraqueza aos meninos. Desta vez, mostrei-lhe o episódio da série Destemidas, dedicado a Thérèse Clerc, em que se vê o tal beijo extremamente nocivo. Mais uma vez, ficou perturbadíssima. “Como assim, um beijo lésbico que dura apenas um segundo?”, perguntou, bastante indignada. “Se as crianças querem ver homossexualidade a sério, optem pela série She-Ra e as Princesas do Poder, transmitida exactamente no mesmo espaço Zig Zag, da RTP 2. Scorpia tem duas mães, Bow tem dois pais, as princesas Spinerella e Netossa são casadas e She-Ra e Catra beijam-se no último episódio. Mas um beijo a sério, não é este miserável chocho.” E saiu da sala, enfadada.
No fundo, há dois tipos de pessoas: as que não gostam de cancelamentos e as que não gostam de cancelamentos a menos que o cancelado seja uma pessoa, filme, série ou livro que não apreciam. As últimas são as mais interessantes porque, alternando entre o sectário e o sonso, ficam várias vezes em posições muito engraçadas. É um espectáculo que se vê com gosto. Pelo menos até aparecer alguém que se ofenda com contorcionismo e proponha o seu cancelamento.