Tal como Frei Hermano da Câmara se entregou todo a Cristo e nunca mais se sentiu só, também eu tive uma experiência mística esta semana. Começou quando a HBO Max retirou o filme E Tudo o Vento Levou do catálogo, num gesto que não constituiu censura, mas sim uma suspensão temporária para contextualizar a obra. Felizmente, eu já tinha aprendido a educar o gosto para distinguir a verdadeira censura de actos que se assemelham mesmo a censura mas não são. Em 1992, quando toda a gente se precipitava para considerar que Saramago tinha sido censurado, eu tomava boa nota das palavras do subsecretário de Estado Sousa Lara, que negava ter censurado o livro. Acontecia, apenas, que o livro perpetuava uma ideia errada sobre Deus e, por isso, tinha sido retirado de uma lista concorrente a um prémio. Na altura, não se propôs que o livro se fizesse acompanhar de uma nota contextualizadora, provavelmente por se suspeitar que Saramago, por rabugice geral ou má vontade específica contra contextualizações, fosse recusar. Entretanto, a Netflix retirou as séries Little Britain, Liga de Cavalheiros e Mighty Boosh, e a BBC retirou um episódio de Fawlty Towers. Impressionado com o nível de racismo na produção audiovisual, resolvi aguardar as contextualizações refugiado nos livros. Talvez tenha tido azar. Comecei pel’Os Lusíadas, convencido de que seria uma escolha segura, mas mesmo no fim li: “Vês Europa Cristã, mais alta e clara / Que as outras em polícia e fortaleza. / Vês África, dos bens do mundo avara, / Inculta e toda cheia de bruteza.” Fechei o livro imediatamente, mas o mal estava feito: o canto de sereia do racismo a seduzir-me sem que eu estivesse firmemente atado ao mastro com as cordas benignas da contextualização. Abri o Beloved, o Huckleberry Finn, o Não Matem a Cotovia, o Ratos e Homens e O Senhor das Moscas: todos incluíam, sem qualquer contextualização, a palavra “nigger”. Nem um parêntesis, nem uma nota de rodapé, nem um sistema que permita dar um pequeno electrochoque ao leitor sempre que lê aquela palavra – nada. Um perigo. Optei pela filosofia: outro erro. Apanhei Platão e Aristóteles a justificarem a escravatura. Não se aguenta. Contextualizem-me o mundo todo, por favor.
Contextualizei-me todo, nunca mais me senti só
Fechei o livro imediatamente, mas o mal estava feito: o canto de sereia do racismo a seduzir--me sem que eu estivesse firmemente atado ao mastro com as cordas benignas da contextualização
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