Tanto os álbuns de banda desenhada como os filmes têm omitido os aspectos mais comezinhos da vida privada dos super-heróis, fenómeno que levanta uma questão perturbadora: se o prestígio do Homem-Aranha não resiste à possibilidade de o vermos a estender a roupa, quão super é o herói? Outro problema: se podemos assistir a derrotas do Batman, e até à sua morte, mas não podemos vê-lo a comprar detergente para a loiça, isso não significa que existe, no acto de comprar detergente para a loiça, qualquer coisa de transcendente que supera até a própria morte? Em resumo: um colosso que não aguenta ser visto a aspirar o quarto é colossal? Gosto de ver o Super-Homem a evitar que um comboio se despenhe numa falésia, mas creio que seria mais interessante vê-lo a comprar roupa. “Tem aquelas botas vermelhas até ao joelho em 46?”, perguntaria ele na sapataria. “Já vi que o meu amigo é do transformismo”, responderia o funcionário, solícito. “O meu primo também. Talvez o conheça. O nome artístico dele é Natacha Cristall, com dois ‘éles’.” Que reacção teria Clark Kent? Nunca o saberemos. Felizmente, estamos agora a conhecer novos super-heróis. São os profissionais de saúde, os funcionários de supermercado, os agentes das forças de segurança, as pessoas que fazem a recolha do lixo. Gente que continua a trabalhar para que o mundo continue minimamente decente. Que são super-heróis, parece-me evidente: todos arriscam a vida por nós, alguns usam máscara, outros têm de fazer biscates porque o trabalho de super-herói não lhes paga a renda (como o Homem-Aranha e o Super-Homem – que, certamente por estarem desesperados, tiveram de arranjar emprego no mundo do jornalismo). Ao contrário dos que protagonizam histórias de banda desenhada, estes super-heróis não escondem a vida quotidiana. Sabemos que têm más condições de trabalho, que têm de improvisar material de segurança, que têm de tomar medidas para não pôr em perigo a saúde dos familiares. E, mesmo assim, recebem a nossa admiração e aplauso (até porque não recebem muito mais. Dinheiro, por exemplo, recebem pouco). Eles, sim, são super-heróis que resistem a tudo. A reputação do Batman não ficaria intacta se ele improvisasse uma máscara com óculos escuros e uma folha de acetato, fizesse uma capa a partir de sacos do lixo, ou se o víssemos a despir-se todo, antes de entrar na mansão, para diminuir as hipóteses de contagiar o seu velho mordomo – até porque o Alfred pertence ao grupo de risco. Os nossos super-heróis são mais super.
(Crónica publicada na VISÃO 1415 de 16 de abril)