Tenho a sensação muito inquietante de que a quarentena dos outros é melhor do que a minha. As redes sociais estão cheias de vídeos fresquíssimos feitos por gente que está em casas impecáveis a dançar, a fazer ginástica e a ter ideias para pregar partidas engraçadas ao cônjuge e aos filhos, enquanto eu estou a varrer e a aspirar. Há quem vá até à janela entoar belos cânticos com os vizinhos, cada um na sua varanda, mas eu só sei disso porque estou debruçado à janela a estender roupa. Olho para a casa e não consigo descobrir sequer um recanto decente onde possa gravar uma conversa por Skype. Ou há uma pilha de livros à espera da prateleira certa, ou uma esfregona encostada que ficou esquecida porque o telefone tocou a meio da limpeza, ou um pano do pó esquecido por entretanto me ter dado conta de que talvez fosse altura de ir arrumar a esfregona.
Não foi nada disto que me prometeram. No Decameron, conta-se que dez jovens se refugiam da peste negra e, durante dez dias, contam cem histórias uns aos outros. Eu estou de quarentena há quase três semanas e ainda não ouvi história nenhuma. Já ouvi reprimendas, gritos e lamentos. Histórias, nada. Provavelmente influenciadas por Boccaccio, muitas pessoas me foram dizendo que a quarentena era uma óptima oportunidade para ler os russos todos, ver as séries que temos em atraso, aproveitar para fazer uma retrospectiva da história do cinema. Ia ser uma espécie de regresso a um tempo mais lento, um misto de século XIX com campismo à volta da lareira, umas férias culturais no fim das quais toda a gente era um híbrido entre Umberto Eco e São Francisco de Assis, porque tinha adquirido vasta cultura e aprendido a apreciar a vida simples. Em vez disso, estou a ser admoestado por ter limpado uma assoalhada que já estava limpa e por ter usado óleo de cedro onde não devia. Na internet, cada vez mais artistas e instituições disponibilizam gratuitamente livros e espectáculos – mas eu só vou ao computador para verificar se o número de infectados já baixou o suficiente para haver esperança de que isto acabe depressa, e eu possa voltar a não ter tempo para desfrutar da oferta cultural por causa do trabalho, e não por causa do trabalho doméstico.
(Opinião publicada na VISÃO 1412 de 26 de março)