Quando vou ao Porto, nunca falha: saio do aeroporto, entro no táxi, o motorista vê-me no espelho retrovisor e diz: “Você só tem um defeito.”
Eu já sei de que é que estamos a falar (por acaso, é da minha única qualidade) e vamos a meter-nos um com o outro durante o resto do caminho. O facto de sermos de clubes diferentes e rivais, ao contrário do que seria de esperar, não nos afasta – é, sim, um pretexto para nos aproximarmos. Em vez de dois desconhecidos que viajam em silêncio, somos velhos amigos que nunca se viram, mas reatam uma conversa antiga. Temos a mesma doença, no fundo, e só a estirpe do vírus é que é diferente. Embirramos com a cor um do outro, não há dúvida – mas é a da camisola. Não faz mal nenhum, é uma desavença do âmbito da indústria têxtil, ao mesmo tempo muito importante e muito insignificante.
Há 40 anos, quando eu comecei a ir a estádios de futebol, as bancadas eram de cimento, não havia lugares marcados, bebia-se cerveja e, quando um adversário negro tocava na bola, às vezes havia quem fizesse ruídos simiescos. Hoje, os estádios são modernos e confortáveis, têm cadeiras numeradas, é proibido vender bebidas alcoólicas e, quando um adversário negro toca na bola, às vezes há quem faça ruídos simiescos.
Os clubes acharam, e bem, que não queriam desconforto e álcool nos seus estádios. O desconforto era chato e o álcool faz mal à saúde. O racismo, aparentemente, não incomoda tanto. A minha sensação, apesar de tudo, é que, comparado com o que acontecia nos anos 80 e 90, muito menos gente se levanta agora para fazer ruídos simiescos. Uma das razões, imagino, é a extrema eficácia do gesto: quando alguém, na bancada, começa a imitar um gorila, realmente fica óbvio para todos que há um símio no estádio. Não está é no relvado.
Como sempre, convém não generalizar. Felizmente, os portugueses não são todos assim, os adeptos do futebol não são todos assim, os vitorianos não são todos assim. Mas os jogadores, os treinadores, os espectadores, a polícia – todos confirmaram que havia gente a fazer ruídos de macaco. As pessoas normais perceberam que o jogo de futebol tinha sido interrompido para dar lugar ao jogo da decência. E nesse jogo, independentemente do clube, como se dizia quando éramos crianças e o futebol era mesmo e só futebol, o Marega joga nosso. Sorte nossa.
(Crónica publicada na VISÃO 1407 de 20 de fevereiro)