Autobiografia Não Autorizada

A loucura não tem de resultar de um engano dos sentidos ou da razão, pode corresponder apenas a um entendimento cúmplice dos outros

O meu vestido tinha uns guizinhos presos ao cinto, que tilintavam de cada vez que eu me mexia, alarmando-me mais para a má vontade do professor

Já falei da minha última festa de passagem de ano em Luanda, mas o mais importante é quase sempre o que fica por contar, o que não consigo contar

Pedras, pedregulhos, descaem para a água. A maré terá começado a baixar, mostrando pedras mais negras. Devem estar molhadas ou cobertas de limos

Passávamos os domingos juntos. Íamos até à Ponta da Ilha, deliciávamo-nos com os gelados do Baleizão, fazíamos piqueniques perto da estrada do Catete

Mantinham-se legalmente casados, moravam na mesma casa, mas ambos juravam que não se falavam há mais de dez anos

Aprendemos a conviver com tudo. Até mesmo com os nossos inimigos. Adaptamo-nos a tudo e tudo domesticamos. Até mesmo a morte

Ultimamente há uma imagem que não me larga, a imagem de uma batalha, da linha da frente de uma batalha. E eu estou lá. Quando temos de cuidar dos nossos pais, já estamos, também nós, a morrer

Com o indicador sobre os lábios, ele impôs silêncio e empurrou-a para dentro. Acendeu o isqueiro, queimou as teias de aranha e fechou a porta atrás de si

Será que não desliguei a luz do escritório? Ultimamente, tem-me custado adormecer. Com o cansaço a moer-me o corpo, a cabeça divaga entre assuntos insignificantes

Gosto de ouvir os nossos passos sobre o chão de caruma, do cheiro a aldeia, uma mistura de lareiras, hortas, pinhais, mato, capoeiras

Pego num dos livros que trouxe. Ando sempre com livros a mais, livros que, desarrumados em pilhas sobre a mesa, me culpam por não conseguir lê-los

Em vez de me entregar desarmada ao desejado encontro, insisti em fazer coincidir o que estava a viver com o que durante tanto tempo imaginara

Quero contar que até há pouco tempo a minha mãe sabia de cor a morada da pensão, mas agora esqueceu-se, e por isso não poderei lá ir, nem chegar perto, sequer

O meu querido pai morreu há mais de 20 anos. Os anos de morte não se deviam contar da mesma maneira que os anos de vida

Nunca dei por mim a pensar, Ah, como gostava de ter um filho. O que há em mim que mereça ser continuado?

Houve momentos em que achei que a coisa não ia correr bem. Pelo meio, perdi o paladar e o olfato. Continuei sem me assustar: ainda não se associavam estes sintomas à Covid

Portávamo--nos como os que não têm tento na língua. E se os nossos pais demoraram a revelar--nos, a mim e à minha irmã, alguns factos da história familiar, isso deveu-se apenas a não ter calhado

Apesar dos muitos anos que nos separavam, talvez tenha encontrado semelhanças entre nós, talvez tenha intuído que éramos feitas da mesma massa

Sonhei com o anjinho azul da casa dos Anjos, um anjinho gordo desenhado num azulejo que o Luís e eu pendurámos junto à porta de entrada