Também eu, durante quatro anos, pouco mais fiz do que esperar por um homem. Esperei, durante quatro anos, pelo Shane. A espera estilhaçava-me os dias ao mesmo tempo que os unificava. Esperava que ele me telefonasse, que aparecesse no chat do Yahoo, que me dissesse quando poderia visitá-lo, que me prometesse que um dia viria viver para Portugal. Deixei de saber quem eu era para além do ato de esperar por ele. Esperar assemelhava-se a ser.
Tudo o que me interessava – os assuntos dele, os gostos dele, os medos dele, os vícios dele, a vida dele, ele – desenrolava-se a dez mil quilómetros do meu corpo. Mais de dezasseis horas de avião sem contar com as escalas. O sonambulismo, tão feliz quanto angustiado, em que eu existia tornava penoso o cumprimento dos meus deveres habituais. Preferia as tarefas que não exigiam concentração, ir ao supermercado, limpar a casa, cozinhar. Dessa maneira, podia continuar a pensar nele, o que ele estaria a fazer, que música tocava nos seus headphones, o que me diria do vestido que eu tinha comprado. Imaginava-lhe gestos, ele soltava-me o cabelo – um cabelo preto comprido que usava num toutiço desalinhado – as mãos dele procuravam a minha pele debaixo da blusa, o meu corpo uma marioneta com um único ânimo: pertencer-lhe. Torturava-me com maus pressentimentos, ele sofrera um acidente de carro a conduzir desembestado no regresso a casa para se encontrar comigo no ecrã do computador, uma das suas frequentes crises de asma fora fatal, morrera afogado numa das praias de Santa Barbara aonde por vezes ia. O medo da morte dele não se comparava ao que sentia quando o imaginava a apaixonar-se por outra mulher, uma qualquer americana alta e loura que não falasse o meu broken English. Nessas alturas, o meu coração atrapalhava-se, os ouvidos zumbiam, negociava com Deus, se eu abrisse ao acaso um livro da estante e o número de letras a da primeira linha em que batesse os olhos fosse par o Shane amar-me-ia para sempre, antecipava o futuro no tarot online, torcendo a meu favor a interpretação do mago, do carro da guerra, do enforcado, da sacerdotisa, pedia insistentemente a Deus que nunca mo tirasse.
Entre Lisboa e Las Vegas existem oito horas de diferença e eu vivia no tempo dele. Passava a noite acordada, à espera do aviso sonoro do chat do Yahoo. Ainda hoje me arrepio se o ouço. Insone, tomada de uma febre juvenil, punha corretor de olheiras, testava que roupa ficava melhor na câmara, tinha atenção à iluminação e ao cenário como se fosse entrar num filme. Quando o Shane não aparecia, a noite era um punhal, lento e gélido, que me atravessava. Ligava-lhe, deixava-lhe mensagens, adormecia enrolada no sofá. We don’t have a future together, escrevia ele ao fim de alguns dias de ausência. Quando regressava ao chat dizia que era preciso ter-se bastante dinheiro para se mudar de vida de forma tão radical. Dinheiro ou loucura. Amávamo-nos, mas éramos quase pobres. E tristemente lúcidos.
Em datas como os nossos aniversários e natais, o Shane declarava-se farto da nossa long distance relationship. It sucks, queixava-se e incentivava-me a encontrar um namorado português. Eu ficava oca por dentro. Condescendia em encontrar-me com amigos apenas para falar da dor que me esburacava. Ia e vinha, a pé, da Avenida de Roma ao Terreiro do Paço e nem assim me cansava. Os meus amigos lamentavam-me, Coitada, no que se foi meter, diziam nas minhas costas. Quando me falavam das rotinas dos seus amores, do filme que viam de mãos dadas ao serão, do brunch de fim de semana, da ida ao cinema, da festa de aniversário do amigo comum, eu dizia, Quem me dera ter isso. Mentia.
Faltava a encontros familiares, recusava convites profissionais, não conseguia ter paz para ler. Estar longe do computador, afligia-me. Nunca deixava o telemóvel no silêncio, para não perder nenhuma das suas mensagens. Como a que me escreveu numa madrugada dele. Algumas letras estavam trocadas, devia ter bebido demais, Vem ter comigo amanhã, dizia a mensagem. Eu estava no semáforo do cruzamento da Avenida Rio de Janeiro com a da Igreja e corri para casa. Não me lembro de ter corrido na idade adulta para além dessa vez. No dia seguinte estava no aeroporto.
Passávamos os dias no quarto do hotel, perto da Strip. Alimentávamo-nos de snacks e cervejas da máquina do corredor. Fumávamos cigarros na varanda, tomávamos banho na piscina à uma da manhã. Ele sabia meia dúzia de palavras portuguesas e o meu inglês era bastante limitado. Não percebendo tudo o que ele me dizia nem conseguindo dizer-lhe tudo o que queria, eu era outra. Nunca fui tão livre.
Continuava, no entanto, à espera. Só que era uma espera ao contrário. Como se a tristeza da partida se anunciasse logo no primeiro instante em que o via. Assim foi, todas as vezes em que estivemos juntos. Nos intervalos da vida. Ou na vida. Não sei.
O Shane tinha sangue francês e índio. Dizia, Oh hell yeah. Gostava de ouvir heavy metal. Ensinou-me a conduzir com mudanças automáticas. Mostrou-me o Grand Canyon. Fumava dois maços de cigarros por dia. Chamava Big Fat Guy ao Clude e Mom à minha mãe. Era um bebedor excessivo. Dizia Holy shit quando se aproximava de monumentos como o Castelo de São Jorge. Foi dependente de drogas durante a maior parte da sua vida. Comia sempre quatro rissóis na pastelaria Suíça. Vimos todas as temporadas de Os Sopranos num agosto ventoso em Lisboa e todas as temporadas de Os Sete Palmos de Terra num agosto tórrido em Las Vegas. Fez-me uma playlist de canções. Tenho o laço do smoking dele guardado na primeira gaveta da cómoda. Morreu no dia 8 de julho de 2017. Já não o via desde setembro de 2010. Quando falávamos ao telefone despedíamo-nos sempre com I love you. Numa das mudanças de telemóvel fiquei sem as nossas conversas do WhatsApp.
Uma paixão simples. Retiro da estante o livro da Annie Ernaux que acabei de ler há dias e abro-o ao acaso. Conto o número de letras numa das frases que sublinhei, pergunto a mim própria se o que me leva a escrever não é saber se os outros fizeram ou disseram coisas idênticas. Dez. Dez letras a.
I love you.
(Crónica publicada na VISÃO 1454 de 14 de janeiro)