Já tinha estado em São Paulo, sempre de passagem, uma conferência, um encontro com leitores, esta é a primeira vez que me demoro cá. Tudo é alto nesta parte da cidade. Ao andar pelas ruas, dá-me a sensação de estarmos todos virados ao contrário, como se a força da gravidade nos tivesse passado a segurar no topo de um salgueiro-chorão de cimento encegueirado em direção ao céu. O meu quarto de hotel fica a meia altura de um arranha-céus. Do outro lado do vidro, em que quase não me vejo refletida, um novelo de edifícios, janelas, portas, varandas, ares condicionados, helipontos, escadas, jardins verticais, a vida despenca-se lá em baixo, distante e minúscula. Aprisionados numa geometria tirânica, incontáveis pontinhos desumanamente apressados são empurrados para as bermas por um vaivém de carros de brincar. O ar continua turvo, Isto é poluição, disse o motorista do Uber que apanhei no aeroporto. Não havia emoção na sua voz, São Paulo é mesmo assim, melhor se habituar logo.
Como se resgata um passado?, sei que tem de haver por aí uma caixa de sapatos velha onde a minha mãe guardou as fitas com que lhe prendiam as tranças, as tranças que a tia cortou logo no dia da chegada
Esta também é a cidade que engoliu a adolescência da minha mãe, nos três anos em que ela aqui viveu. Esta cidade, não, a cidade que esta cidade era há três quartos de século. Os anos envelhecem-nos bastante mais do que às cidades e tenho esperança de me encontrar com a minha mãe menina. Desta vez tenho tempo. Antes de sair de casa, perguntei à minha mãe a morada da pensão onde o seu tio a pôs a trabalhar em vez de a ter mandado para a escola como prometera ao meu avô. Ao contar esta história, a minha mãe dizia sempre a morada de rajada, nunca me dei ao trabalho de a apontar ou decorar. Convenci-me de que quando dela precisasse, quando aqui viesse com mais tempo, a minha mãe prontamente ma diria. De rajada, como sempre. E então eu iria lá, tiraria fotografias, faria vídeos, talvez sobrasse alguma coisa que a minha mãe reconhecesse, A morada da pensão, como é que é a morada?, tinha-a sempre na ponta da língua, agora esqueço-me de tudo, ficava perto da igreja dos Salesianos, daqui a pouco já me sai. Não insisto e por isso aqui estou desamparadamente só, dentro de um táxi que me leva à minha editora brasileira. Pergunto ao motorista onde fica a igreja. Conto resumidamente a história da minha mãe e ele suspira, Ah, também sou filho de portugueses que vieram nesse período, início dos anos cinquenta, havia muita fome em Portugal, miséria mesmo. O homem sorri, Miséria houve sempre, lá e cá, essa igreja ainda existe, mas não aconselho a senhora a ir, não, é que nós aqui em São Paulo temos um problema, Cracolândia, sabe o que é?, essa igreja fica no meio da Cracolândia, não aconselho a ir, não. Olha pelo retrovisor, à espera que eu lhe responda, mas não sei o que lhe dizer. Então, ele conclui, Essa é uma miséria pior do que a fome. Baixa o volume do rádio, como que para pensar melhor, Vai dar no mesmo, fome traz essa miséria, povo de barriga cheia não precisa de crack, não precisa de esquecer nada, povo de barriga cheia é feliz.