É o dia da minha primeira comunhão. Quase hora do almoço e eu ainda em jejum, não se podia receber o Corpo de Cristo se se tivesse comido. Tenho na boca a deceção da hóstia sagrada, afinal era só uma bolachinha insípida que eu, seguindo as ordens da catequista, não me atrevera a mastigar. Depois das fotografias em frente ao altar da Nossa Senhora com a minha mãe e irmã e das fotografias do grupo dos recéns comungantes na modesta escadaria frontal da igreja, estou a sós com o meu pai, os dois afastados do frenesim dos abraços de fim de cerimónia posamos ao lado do nosso carro novo, um Mazda creme 1500, matrícula AAB-57-85, A banga que este carro vai mandar na Metrópole, diz o meu pai, ao acender o cigarro que tem na mão esquerda, guardando depois no bolso do casaco o seu isqueiro Ronson Varaflame. A fotografia não denuncia os instantes que a antecederam, mas eles estão inscritos na minha memória, no meu corpo, não sei onde este acaba e aquela começa, se há fronteira entre os dois, ou contacto, sequer.
Lenta, muito mais lenta do que o nosso bulício, toda a manhã da vegetação que se avista desta janela sobre o passado é contada pela fotografia. Três pés de arbustos, que tentam ser árvores e espigam numa aflição desordenada, conseguindo ganhar uma altura pouco mais do que humana, criam a sombra possível, além do carro. Uma vegetação que desmente a exuberância que é habitual associar-se a África. A minha África foi quase sempre a da desolação de um desterro quente. Havia quem jurasse que o inferno seria mais fresco.