No virar do milénio, candidatei-me a uma Bolsa de Criação Literária do Ministério da Cultura. Propunha-me escrever um romance intitulado Campo de sangue. Incluí na candidatura, para além do requerimento e dos circunspectos documentos exigidos, o primeiro capítulo, reescrito dezenas de vezes, e um pequeno texto onde expliquei as razões por que me considerava merecedora da bolsa. Imprimi tudo em papel acetinado, usei separadores de seda amarelos para dividir os vários assuntos e escolhi uma capa com atilhos de veludo. Quando me ligaram a comunicar que me tinha sido atribuída uma das doze bolsas disponíveis nesse ano, convidaram-me a estar presente dali a dias no jardim da Biblioteca Nacional, para uma foto de grupo com os outros bolseiros. Eu não conhecia pessoalmente nenhum deles e era a única que não tinha trabalhos publicados. Também não conhecia nenhum dos funcionários do então IPLB nem nenhum jornalista ou fotógrafo cultural. Tinha trinta e seis anos e comecei assim, quase burocraticamente, esta minha outra vida.
Compareci à hora marcada, com a minha melhor roupa e a esperança de nem sei bem o quê. Era um sábado indeciso de sol. Depois das apresentações, não soube o que dizer nem o que fazer, os braços de repente tão desajeitados, os cigarros incapazes de que me ocuparem os gestos. No relvado do acesso principal da Biblioteca, enquanto o fotógrafo nos enquadrava para a posteridade, alguns bolseiros fizeram conversa de circunstância. Mantive-me calada a maior parte do tempo e subitamente, Queres que te ofereça o meu colar?, perguntou-me a Adília Lopes, levando a mão quase infantil às contas do colar de madeira que trazia.