Livre dos deveres que consomem o quotidiano, a minha mãe gasta o tempo em recordações e eu ligo o gravador do telemóvel, acreditando que assim ela morrerá menos. À noite, a casa já a dormir, carrego no botão . O sotaque transmontano irrompe mais acentuado, reconheço na voz da minha mãe detalhes de que, na sua presença, a visão me distrai. Ou então sou eu mais atenta às coisas acontecidas do que às que me vão acontecendo. Apesar de ter saído da Fonte Longa há quase 60 anos, a forma de a minha mãe sibilar as palavras mantém-na ligada a antepassados que não conheci. Implacável, o gravador regista também os desarranjos da memória, as histórias argamassam-se umas nas outras como se continuidade e veracidade tivessem deixado de ser importantes. O passado deixou de existir. Várias versões perfilam-se, algumas mais recorrentes, com armadilhas que prendem cada vez mais a minha mãe.
– Não sei se te lembras dos ganchos de ferro no teto do quarto lá de dentro, na casa dos meus pais, aquele que ficava ao pé da sala.