Um dos dois passaportes do Pedro diz que ele é português, o Registo Civil certificará que nasceu em Lisboa numa maternidade que ficava ali atrás da Fundação Calouste Gulbenkian e já não existe, neto e bisneto de famílias de Setúbal, onde viveu até aos nove anos. No entanto, a verdade é muitas vezes diferente daquela que os documentos declaram: o Pedro é apenas norte-americano e temo que um dia desate a pregar nas árvores e nos postes cartazes com a fotografia de um velhote de boné branco. Em vez de, Procura-se, morto ou vivo, dos filmes dos cowboys, Procura-se a receita dos gelados do Ervilha. Talvez só ainda não o tenha feito por não conseguir chegar a acordo consigo mesmo sobre a recompensa a oferecer, qualquer valor, por maior que seja, deve parecer-lhe mesquinho. É esse o problema das memórias que nos perseguem, que nos prometem um regresso àquilo a que queremos entregar-nos: são inestimáveis.
Nunca tinha ouvido falar do Ervilha até ter conhecido o Pedro. Era verão, fazia calor, eu estava feliz por ter encontrado o Pedro, já tão tarde na minha vida, que acreditei que aquele tempo nunca acabaria. A partir dali, seria só luz, sol, amor e mar para sempre. Foi o verão de 2019, o último antes de um vírus ter mudado o mundo. Num dos nossos primeiros encontros, lembro-me de que me apresentara com risco preto nos olhos, gotas de perfume no pulso, sapatos para calcorrear uma cidade quase desconhecida para o Pedro recém-regressado dos Estados Unidos, parámos para comer um gelado perto do Cais do Sodré. O Pedro estava encantado com a diferença que Lisboa apresentava em relação às suas memórias, a tristeza sombria e pobremente compostinha transformara-se: uma exuberância de esplanadas cheias, turistas que traziam o mundo inteiro numa azáfama de selfies, as fachadas dos edifícios limpas, tuk-tuks a atravancarem o trânsito, a cidade num frenesim de mudança, a estoirar de vida, prestes a atingir um limite que olhos estrangeirados confundiam com alegria. Saboreávamos o gelado à beira-rio, o Tejo quase parado como se não fosse uma tirânica ampulheta de um só sentido a lembrar-me que o passado é sempre passado e que jamais poderei regressar ao instante que culposamente desperdicei, ao instante em que quase fui feliz, àquele outro em que não me importei de ser injusta, instantes, esses fantasmas do futuro, não posso guardar nem corrigir nenhum instante, como cuidar do tempo que passou, do tempo que passa? O Pedro e eu caminhávamos pela borda da água, os relvados pejados de gente deliciosamente ociosa, Que bom, disse eu, em luta para comer o gelado mais depressa do que ele se derretia. O Pedro concordou, era um bom gelado, mas não se comparava – nenhum gelado no mundo se comparava, aliás – aos do Ervilha, Nunca ouviste falar do Ervilha, perguntou-me incrédulo, ao aperceber-se de que eu não o estava a acompanhar no que ele dissera. Até então, ervilha, para mim, era apenas a concentração redonda e verde de vida, perfeitamente arrumada entre outras idênticas no escuro esconderijo de uma vagem.