Acordo. Ainda é o fim da noite. Galos cantam em quintais vizinhos, pássaros agitam as copas das árvores a que a minha mãe tem tanto amor, e os meus passos levam-me do meu quarto até ao andar de cima. Do outro lado da longa janela de vidro, a luz começa a esburacar o céu. Sobre o casario que desponta, uma grossa corda de nuvens. Sento-me à secretária, ligo o computador, escrevo no lusco-fusco. Os meus dedos conhecem os caminhos do teclado, podiam prescindir da luminosidade fria do ecrã que entristece as costas das minhas mãos. Arrependo-me do verniz que escolhi para as unhas, Torna as mãos mais jovens e dá-nos outro ânimo, é uma cor de verão, aconselhou-me a Carla, a manicura, enquanto desenroscava a tampa do frasco do verniz para me mostrar a pasta coral pegajosamente sintética nele guardada, É das cores com mais saída em Nova Iorque, de certeza que vai gostar, acrescentou, às vezes tem de se abandonar a zona de conforto, um verniz destes nas mãos e é-se outra pessoa. Continuo a ser a mesma pessoa – e por que haveria eu de querer ser outra? – só que agora as minhas mãos não me pertencem. O marketing assemelha-se àquela vizinha que todos temos: ao cruzar-se connosco no prédio só fica satisfeita se nos acha infelizes e, se tal não acontece, mói-nos até nos roubar um pedaço de confiança. Não foi, pois, a lábia de vendedora da Carla que me fez aceitar a disruptiva sugestão, mas como podia eu falar-lhe do…
estas unhas que não são minhas, que pertencem a uma nova-iorquina que não conheço, arrastam-me as mãos para fora do teclado, começam a tamborilar sobre o tampo da secretária, será que se autonomizaram de mim e aprenderam a tocar piano?, não, os meus dedos não passaram a ser os de uma pianista, assemelham-se mais a pernas de bailarinas de Can-Can ou de uma outra dança,