O meu pai morreu há dezanove anos, cinco meses e vinte dias. Quando estou distraída e me esqueço disso, o silêncio da casa afrouxa e ouço os passos dele nas escadas de madeira. Passos atarefados para o trabalho, passos cansados do fim do dia, passos ligeiros dos almoços de domingo e dos relatos de futebol, passos arrastados, trémulos, doentes da velhice. Ouço-o bater à porta do meu quarto para me salvar da preguiça do fim de semana, os nós dos dedos a tamborilar a madeira, Ainda tenho sono, grito eu do fundo do edredão, Parece que a tua filha anda a deitar-se tarde, diz à minha mãe que, culpada por não garantir que eu vá para a cama a horas decentes, inventa sempre a mesma desculpa, Foi a festa de anos da Luísa. A Luísa chegou a ter dez aniversários num ano. Aos domingos, as vozes deles e o cheiro do assado no forno ou das carnes do cozido entravam pelas frinchas da porta do meu quarto e eu prometia que sairia de casa logo que pudesse. O meu pai morreu há dezanove anos, cinco meses e vinte dias e sou capaz de jurar que ainda sei de cor o gesto de se sentar à cabeceira da mesa para almoçar, Vamos lá ver como está isto, ainda sei de cor o tamanho das mãos dele, a sua mão grande e elegante sobre o meu ombro na fotografia que nos tiraram na minha primeira comunhão, gestos parados para sempre, e o breve encolher de ombros que denunciava contrariedade, o entortar a cabeça quando tentava decifrar um qualquer pequeno mistério, o meu pai morreu e quase me espanto que lhe tenhamos sobrevivido assim, não completamente devastadas, como conseguimos nós prosseguir sem a certeza da sua proteção? O olhar do meu pai a procurar sempre o da minha mãe e a sossegar-se de encontrá-la, o seu corpo ainda robusto a levar a minha irmã ao altar e, dezasseis anos depois, já mais gasto, a fazer o mesmo comigo, o meu pai a embevecer-se com os primeiros passos do Coca, a aparecer em casa com a máquina de escrever que eu tanto queria, a pedir-me que eu deixasse de fumar, a dizer que se matava se o empréstimo do IARN não fosse aprovado, a comprar-me o bolo de aniversário com a forma de um coelho, o meu pai no quintal, em Luanda, a ver o seu barbeiro cortar-me o cabelo à tigela, às voltas do fogareiro, brilhando a carne com uma couve azeitada, e a beber Cucas fresquinhas, Não levamos mais nada desta vida. O meu pai tão feliz no dia em que assinou a escritura desta casa, a casa das escadas de madeira e da sala onde ele lia os jornais do dia, horas e horas calados, ele e eu, o meu pai entretido com as notícias do mundo e eu com os romances que requisitava na biblioteca ou com os livros de Direito, por altura das épocas de exames, a minha mãe e a minha irmã a tagarelarem na cozinha, Têm medo do silêncio, queixava-se o meu pai, o meu pai silencioso como se não soubesse que iria ficar silencioso para sempre.
Aqui estou na sala, o meu pai não estranha o sofá que comprámos muitos anos depois da sua morte e mantém-se sentado no seu lugar junto à janela, agora há menos jornais nesta casa, ele abre um, a lupa à cata do mundo, Fogem-me as letras, tudo me foge. Também ele me foge quando, a medo, me sento no extremo do sofá. É então que sussurro, Vieram de descapotável?, e a gargalhada do meu pai traz-mo de volta. Muito riso, pouco siso. Quantas vezes o provérbio lhe serviu de desculpa para a compostura sisuda que ele nunca soube abandonar. Desajeitadamente sorridente para com aqueles que queria por perto, nós, os amigos, os parceiros dos jogos de cartas, os seus trabalhadores, tratava os restantes com uma severidade seca que impunha a distância, e nunca, mas nunca, se permitia o riso. Brutidades, brutidades, dizia, disfarçando mal a satisfação com que assistia aos meus familiarmente célebres ataques de riso, que me deixavam escangalhada, em lágrimas, à beira do sufoco. Que ainda me deixam. Não sei de onde vêm os meus inexplicáveis ataques de riso, talvez eu precise, de tempos a tempos, dessas tempestades de humor para me reaprumar. Talvez me ria por mim e pelo meu pai.