Os pássaros que procuravam comida nas nêsperas apodrecidas, nos figos lampos, nas maduras folhas de couves e acelgas, foram-me acordando, a luz ia frisando os estores com demora, riscas aguadas, estava a sonhar com damascos, alguém me oferecera uma enorme cesta de damascos amadurecidos e eu comia-os com prazer, o sumo dos damascos redondos, alaranjados e carmim na minha boca, o chilreio dos pássaros foi subindo de tom, mais alto, mais alto, cada vez mais alto até se transformar nos gritos da Ru. Que são sempre os gritos da minha culpa.
A história da culpa que tanta vezes me arranca de onde estou para me arremessar impiedosamente de encontro a novembro de 2015, em vésperas de dias de temporal, começa lá para trás, na década de noventa, numa excursão a Bruxelas a convite do Centro Nacional de Cultura de que o Luís e eu havíamos sido bolseiros. Muito mais arredia à ideia de viajar do que hoje sou, não teria aceitado o convite, caso o Luís, o meu entusiasta Luís, não me tivesse convencido a fazê-lo, se o programa cultural não fosse interessante, se os bolseiros que viajariam connosco se revelassem indisponíveis ou enfadonhos, teríamos sempre a magnífica Grand Place, o Atomium, o Manneken Pis. E ter-nos-íamos.