Gritámos, em contagem decrescente, até ao segundo toque. Nesse dia, a professora de História tinha faltado às aulas das outras turmas e era certo que nós, o 8º C do liceu de S. João, teríamos um furo à última hora. A contínua assistia do corredor ao pequeno tumulto que acontecia à entrada da sala de aula, Cinco, quatro, três, dois, um e trimmmm, o toque da liberdade. Uma hora por nossa conta, uma hora como as dos adultos, que faziam do tempo deles o que lhes apetecia. Assim faria também eu, apesar de ser pouco mais do que uma criança. Treze anos, os ossos a crescerem como cabides que tentassem ajustar-se às roupas largas e esquisitas que recebera do IARN, os cabelos desalinhados no vórtice do início da adolescência, os dedos infantis e roliços sujos de tinta, Trimmm. Precipitámo-nos a ir buscar as nossas pastas, o Diogo, o delegado de turma, apagou o quadro da aula anterior, meia dúzia de verbos em francês conjugados no futur simple e no futur antérieur, as carteiras de fórmica abandonadas do propósito de nos treinarem para ocuparmos os nossos lugares no mundo dos grandes, a contínua fechou a porta da sala à chave e o 8ºC volatizou-se numa algazarra de despedidas, a Carla telefonou aos pais da cabina do corredor para que a viessem buscar, a Mena, o Tó e o Gordo sentaram-se a lanchar na cantina, o Artur e o Jacaré ficaram a dar toques de bola no pátio entre os pavilhões A e B, eu engrossei o enorme grupo que se fez apressado à rua, seguindo depois com os que se dirigiram para o mar.
Quando chegámos à praia, éramos apenas sete, ríamo-nos com a imitações que a Xana fazia da voz esganiçada e dos tiques da professora de Biologia, a Teresa exibia os seus dotes de ginasta com rodas e pinos na areia, o Raul apostava a trajetória das ondas, jurando que haveria de surfar em Malibu, a Né entoava as canções das telenovelas que todos sabíamos de cor, Eu sou nuvem passageira que com o vento se vai… E se formos até Cascais pelo paredão?, desafiou-nos o Proença do alto dos seus dezasseis anos e das suas três orgulhosas reprovações. Cinco de nós morávamos para aqueles lados, seria mais de meia hora a andar, mas o Proença merecia-nos respeito por, entre outras coisas, andar de mota e fumar as beatas que apanhava do chão. Acedemos e pusemo-nos a caminho, deixando a Né e a Teresa para trás. No final dos anos setenta, andar pelo paredão era uma aventura arriscada. O perigo tanto vinha do mar, à esquerda, como dos recantos da escarpa, à direita: em certos troços do percurso, as ondas mais fortes galgavam a pouca proteção que as rochas criavam, tragando o que lhes surgisse pela frente, noutros, escondidos do bulício da Marginal, vários metros acima, havia homens que se apossavam, ameaçadores, daquele ziguezague solitário. Acoitados pela sombra da escarpa ou provocatoriamente expostos, quase em desequilíbrio sobre a água, por vezes acompanhados de uma cana de pesca, semicerravam olhos despudorados para melhor marcarem quem ousasse seguir por aquele trajeto sem fuga. Só de longe a longe, lances íngremes de escadas ou túneis em abóbada resgatavam as almas daquele belo e abandonado submundo. Contavam-se histórias de roubos, violações, afogamentos.