Em breve não morreremos, a humanidade correu desalmada para chegar aqui, à beira da imortalidade, se não desligamos o motor cego do progresso, se não abrimos o paraquedas da justiça social, da compaixão, esmagar-nos-emos tristemente contra a eternidade.
Conheço muito bem as utopias do Luís, temo-las discutido ao longo dos anos, A nossa geração já não vai a tempo de ser amortal, continuou ele, talvez nem a mais jovem das gerações já nascida vá a tempo, isso torna ainda mais disparatado que, em vez de prepararmos benignamente esse mundo em que não morreremos, continuemos com a correria desalmada. A Isabel riu-se, Que tédio deve ser viver para sempre, e logo a Cristina se meteu na conversa, Ainda ontem li um artigo sobre a Inteligência Artificial em que…
Tinha cozinhado a tarde inteira. A panela do chili fumegava sobre a toalha de linho. Acendera as velas, estreei um vestido azul, calcei sapatos com laço. Éramos mais de duas dezenas em minha casa. O soalho de tábua corrida amarelecia com a luz baixa dos candeeiros. Outra gargalhada noutro canto da sala, a abafar a Aretha Franklin,
Forever, and ever, you’ll stay in my heart
and I will love you.
Olhei, com gratidão, à minha volta. Tinha comida na mesa, amigos verdadeiros, a casa aquecida. Quando tivermos robôs, ninguém vai precisar de lavar a louça. Ou então teremos pratos biodegradáveis. Pratos que se possam comer, disse a Joana. As aulas também deixarão de ser como as de agora, vaticinou o Luís, que sentido faz os meus alunos aturarem-me quando já é possível verem na internet aulas dadas pelos melhores professores do mundo?, felizmente não falta muito para a minha reforma, o Ralf, ainda atarantado com o português, fez sinal que não compreendera parte do que tinha sido dito, É melhor mudarmos a música, queixou-se o Pedro, e a Dina, Quero ouvir a teoria do Luís sobre o ensino, Já sabes como sou um idiota, em ambos os sentidos da palavra, respondeu ele, todos se riram. De dentro dos seus 85 anos, o Fernando pediu para ir para casa, Ainda não chegou a meia-noite, pai, lembrou-lhe a Zi.
Brindámos. Tchim-tchim sem cruzar as taças para não dar azar, olhos nos olhos para evitar sete anos de mau sexo, tchim-tchim. Começava um ano gago de excelência, vinte, vinte. Quando todos se foram embora dancei sozinha,
Bem-vindo 2020,
Forever, and ever, we never will part
Oh, how I love you
Together, forever, that’s how it must be
*
Apesar de ser um bom dançarino, o meu pai não gostava de festas. Ou então fingia que não gostava para que nós, as suas filhas, não lhes tomássemos o gosto e pudéssemos continuar a ser meninas bem-comportadas.
Em Luanda muda-se de ano no pico do calor. Organizavam-se festas de passagem de ano em todo o lado, mas as que a minha irmã e eu mais invejávamos eram as do Clube do nosso bairro. Dias antes, começava a grande azáfama, enfeitavam-se os muros do quintal com folhas de palmeira, cruzava-se a chapa ondulada com fios de luzes coloridas e serpentinas, havia discussões acaloradas sobre os lugares das mesas, as iguarias do improvisado buffet, os desconjuntados conjuntos musicais que alegrariam o baile. No último dia do ano, um camião passava a molhar a rua para que o pó não se levantasse da terra amarela, nós implorávamos ao meu pai que nos deixasse ir à festa do Clube, mas ele, Vamos antes à ponta da Ilha, talvez haja fogo de artifício, a minha irmã já enredada nos seus namoricos adolescentes jurava que nunca lhe perdoaria. Enquanto o bairro inteiro passava debaixo da nossa varanda em direção à festa, moças casadouras, velhos enxutos, crianças espevitadas, mulheres tremelicantes nos sapatos altos, homens com camisas de colarinho à aviador e bigodes caídos, rapazes a exibirem-se nas suas mini-Hondas, nós íamos jantar a um restaurante que servisse comida da Metrópole e, no regresso, passávamos pela ponta da Ilha, a minha irmã e eu, sentadas no banco de trás do Mazda, a odiarmos o meu pai. Ano após ano.
Por isso, quando no final de 1974 o meu pai reservou mesa para a festa do Clube, ninguém lá em casa acreditou. Há guerra, ainda disse a minha mãe assustada, mas nada poderia demover o meu pai, raras vezes o vi tão entusiasmado. Lá fomos. A minha irmã, de cabelo enrolado pela cabeleireira da Baixa, pintou os olhos como se fossem céus, vestiu a maxi cor de laranja sem costas e empoleirou-se nas socas de tacão, a minha mãe tornou a dar uso ao vestido plissado do casamento do primo Alberto, eu escolhi o fato safari branco e o meu pai foi de balalaica. Mandávamos banga. No Clube, todos diziam que a festa estava diferente, não era só a falta dos que já se tinham ido embora, nem os contentores de madeira que se avistavam nos quintais dos vizinhos que engrossariam a debandada, nem a ameaça de a guerra chegar até nós, o futuro tinha desaparecido da nossa frente, o encarreiramento de dias baralhara-se e era difícil adivinhar o que se seguiria ao quê. O sr. Carvalho tirou-nos uma fotografia, os quatro sentados na mesa do canto, a minha irmã esquecida de odiar o meu pai, a minha mãe a sorrir, eu distraída com qualquer coisa que se passava na mesa ao lado, uma fotografia perdida no meio de tudo o que deixámos em Luanda, meses mais tarde, ao fugirmos na ponta aérea. Nessa noite, dançámos alegres sem conseguirmos imaginar que no ano seguinte estaríamos noutra vida.
*
Uma epidemia é diferente de uma guerra, ainda que ambas nos apequenem, a nós, a espécie todo-poderosa do planeta – quem sabe se do universo. Não por sermos vítimas de uma ou de outra, mas porque a nossa mera vontade concertada bastaria para evitarmos uma e outra. Concertar ou desconsertar, eis a questão.
Não juntarei família e amigos nesta passagem de ano. Mas pedirei cuidadosamente os 12 desejos. Mesmo que fique enjoada com as passas. O que acontece amanhã é guiado pelos desejos de hoje. Agora que o futuro deixou de ser esse destino distante de há um ano, agora que nos estatelámos nele, é tempo de nos erguermos outros. Felizes.
The moment I wake up
Before I put on my makeup
I say a little prayer for you.
(Crónica publicada na edição 1452 de 31 de dezembro)