O Coca tem 4 anos, a franja cortada a direito, os olhos encolhidos por causa do sol, calções pelo joelho, sandálias de cabedal bastante usadas e uma t-shirt com uma manga de cada cor, tão ao gosto da década de 80. A cara está voltada para cima, ligeiramente para o lado, o olhar inquisitivo, mãos nas ancas, cotovelos circunflexos, o pé direito um pouco atrás do esquerdo. O Miguel não se baixou para tirar a fotografia e o corpo do Coca parece atarracado, a cabeça demasiado grande. Atrás, há um enovelado de arbustos e silvas cheio de pó, folhas secas amontoadas nas bermas de uma estrada de terra batida, ninguém adivinharia que andávamos pela verdejante e húmida serra de Sintra. Onde está o macaco maluco?, perguntara-nos o Coca, segundos antes do disparo da fotografia, O senhor do parque disse que ele veio de bicicleta para a serra, devemos encontrá-lo daqui a pouco, respondi-lhe, tentando que ele continuasse entusiasmado com o passeio.
O Miguel e eu costumávamos levar o Coca ao Parque Marechal Carmona, em Cascais. Mais ou menos a meio do jardim, havia umas jaulas onde uns pobres símios aprisionados passavam os dias a catarem-se uns aos outros, a empoleirarem-se numa geringonça de metal construída para o efeito, a treparem pelas grades, a comerem bananas que as crianças atiravam. Eram todos iguais aos olhos dos humanos. Só um se distinguia por desatar aos guinchos quando alguém se aproximava. O Coca ficava aflito, porque fazia ele aquilo?, estava zangado connosco, tinha um dói-dói, fome, sede, onde estavam a mãe e o pai dele, precisava de alguma coisa, queria fazer-nos mal?, um não acabar de perguntas que acompanhavam a volta que dávamos ao parque e que terminavam invariavelmente com, Vamos ver o macaco outra vez, tia. Eu não sabia como recusar o pedido nem como responder-lhe às perguntas, É um macaco maluco, disse-lhe uma vez, imitando, desajeitada, os guinchos do macaco, apresentando o seu comportamento como inofensivo e divertido. A explicação acalmou o Coca, mas o seu interesse pelo intrigante animal não diminuiu. Com o tempo, fomos transformando o macaco maluco – assim passámos a chamar-lhe – numa amigável personagem do nosso quotidiano, o macaco maluco conduzia a carrinha verde que estava sempre misteriosamente estacionada à frente do nosso prédio, morava num dos apartamentos da cave, o das janelas empoeiradas que nunca se abriam, era o melhor amigo do Jumbinho, o cão da vizinha de baixo, a Maria Augusta, ajudava o mal-encarado guarda-noturno nas suas rondas enquanto todos dormíamos, a vida do macaco maluco era um nunca acabar de aventuras e peripécias. O Coca ouvia com atenção tudo o que lhe contava e acalentava o desejo de encontrar o macaco maluco fora da jaula. Naquele dia, na serra, isso poderia muito bem acontecer.
O Miguel e eu éramos, então, muito jovens, quase nada em nós durava no tempo. Os nossos corpos desenfezavam-se de forma bravia e, sem que déssemos conta disso, arrogantemente convencidos do contrário, as nossas convicções eram argamassas moldáveis. Sentados na esplanada da gelataria do Gianni, as conversas ainda mais voláteis do que as ideias, cogitávamos como haveríamos de tornar-nos independentes dos nossos pais e, de caminho, mudar o mundo. Tanto nos agradavam os ideais socialistas de distribuição da riqueza quanto a prática do catolicismo e a ajuda aos mais necessitados, admirávamos a União Soviética e os filmes de Hollywood, recordávamos, nostálgicos, revoluções a que não assistíramos, Cuba, Maio de 68, Woodstock, íamos à missa aos domingos de manhã ressacados das noites em claro a dançar na Frolic ou das sessões das duas da manhã do cinema do Centro Comercial Riyadh.
O forte da Nossa Senhora da Luz tapa a vista do mar à igreja matriz de Cascais, um edifício austero no cimo da colina que se ergue da baía. O Coca gostava de nos acompanhar para todo o lado, até para a missa. Só que ia ainda o padre no sermão e já ele perguntava sem baixar suficientemente a voz, Falta muito? A missa maçava-o, mas não lhe beliscava o gosto que tinha por igrejas. Ao passarmos em frente de uma, era raro que não pedisse para entrarmos. De mão dada comigo, percorria os corredores laterais até ao altar, demorando-se menos no brilho dourado da talha do que na sombra dos nichos onde imagens de santos ou de Cristo padeciam silenciosamente, Porque é que lhe fizeram aquilo?, a mão dele a apertar a minha, Conta outra vez a história do Jesus. Essa história não vinha nos livros que lhe lia e com que o adormecia à noite, a cabeça dele no meu peito, pesada, cada vez mais pesada, ele muito atento às ilustrações. Entrar nas igrejas devia ser como mergulhar nas ilustrações dessa história, para ele ainda sem livro, que tanto o seduzia quanto amedrontava. Por altura do Natal, o Coca ficava contente por ver o presépio e não tenho a certeza se percebia que, ao crescer e tornar-se adulto, o bebé, deitado na manjedoura a estender-nos os braços, tinha sido o homem a quem prenderam esses mesmos braços a uma cruz. O Coca apontava satisfeito para o São José, Aquele é Deus, tia? Eu perdia-me na procura de uma resposta que pudesse justificar Jesus ter dois pais e só existirem imagens de um deles. Numa das vezes que entrámos numa igreja a seu pedido, o Coca manteve-se estranhamente calado para a criança palradora que era. Matutava na descoberta que acabou por revelar, Deus é o macaco maluco, não é, tia?
Não sei se o Coca continua à espera de encontrar Deus, se continua à espera de encontrar o macaco maluco fora da jaula. Ou se já os encontrou. Tenho de lhe perguntar. Talvez ele se perca menos do que eu na procura de uma resposta.
Moro outra vez em Cascais. Passados mais de 30 anos, retomei os passeios pelo parque. No sítio das antigas jaulas, construíram instalações sanitárias. Dos animais que lá viveram aprisionados restam apenas, nos azulejos que cobrem as paredes, desenhos que os retratam. Livres.