Eu tinha treze anos quando a minha irmã se apaixonou pelo Nelson, um vizinho nosso de Luanda, entretanto reencontrado na Metrópole. Um ano depois, ele decidiu emigrar para a Suíça e a minha irmã desistiu da faculdade para o seguir, dando ao meu pai um dos maiores desgostos da sua vida. Prefiro morrer a ficar longe dele, assegurava a minha irmã, justificando assim a irreversibilidade da sua decisão. Eu ouvia-a fascinada por me parecer que ela se havia transformado numa heroína das novelas da Corín Tellado, que eu requisitava na biblioteca. Já tinha dezassete anos quando a minha irmã nos telefonou com a notícia de que estava grávida. Hoje a cerveja é por minha conta, anunciou, horas mais tarde, o meu pai no café do Bento, num contentamento descarado que nunca lhe tinha visto. As minhas decisões e as da minha irmã acerca das nossas vidas nunca deram grandes desgostos ou alegrias à minha mãe, Se vós estiverdes bem, eu também estou, governei a minha vida como entendi, tendes o direito de governar a vossa como quiserdes. Envergonhava-me o seu provincianismo, impiedosamente denunciado na maneira de falar à padre.
Não deve ser possível crescer sem se sentir vergonha dos pais.
Talvez o receio de ser também eu alvo dessa vergonha me tenha desviado de ser mãe.
A notícia da gravidez da minha irmã pôs a minha mãe numa azáfama de tricô, crochê e bordados. Dos serões à frente da televisão e dos fins de semana começaram a nascer cueiros e minúsculos casacos atados com fitas de cetim, botinhas de lã, babetes, lençóis bordados, xailes, dúzias de fraldas com bainha de rolinho, roupinha branca, amarelo-clarinha, verde-água, cores que davam para o que viesse, menino ou menina, Desde que venha saudável, dizia a minha mãe, invocando deus, de seguida, Assim Ele o permita. O meu pai queria o rapaz que nunca tivera e por isso a minha mãe fez uns conjuntinhos azuis para dar sorte. A barriga da minha irmã ia-se empinando nas fotografias que recebíamos na volta do correio e aturdia-me a velocidade com que ela passava para o lado de lá, para o lado da vida dos adultos que tantas horas de conversa nos havia tomado, as duas deitadas na cama, a luz apagada, a decifrarmos como seria crescer, trabalhar, ter casa, marido, filhos, a vida da minha irmã repentinamente mais parecida com a dos meus pais do que com a minha.
Mesmo sem saber se viria aí uma neta ou um neto, não demorou até a minha mãe encher duas enormes malas de enxoval, Deve ser rapaz, a barriga está muito subida, as raparigas alargam mais as mães, afiançava a Cacilda, olhando para uma das fotografias que receberamos. Mas a minha mãe preocupava-se mais com outra questão que, essa sim, lhe tirava o sono, como fazer chegar as malas a Genebra? Depois de muitos telefonemas para várias empresas de transporte, não havia dúvidas de que ficava bastante caro expedi-las. Acrescia ao custo o perigo de as malas se perderem ou danificarem.
Não me lembro de quem partiu a ideia de que poderia ser eu a levar as malas, talvez tenha sido eu própria a sugerir, até porque a minha irmã precisaria de ajuda quando a gravidez estivesse mais adiantada. Contas feitas, de novo, iria de autocarro, a viagem de avião e o excesso de peso eram incomportáveis para as nossas posses. Se ainda hoje não sei medir bem o grau de dificuldade e de cansaço dos trabalhos em que me meto, em nova julgava-me invencível, apesar da fragilidade do meu corpo. Sim, em julho, iria de autocarro. Quase dois mil quilómetros, mais de trinta e cinco horas de viagem, duas malas de enxoval, outra com a minha roupa, saco de farnel, dois maços de tabaco e O Assassinato de Roger Ackroyd. Ia passar as férias grandes em Genebra, ajudava a minha irmã e tentava arranjar um emprego em part-time, toda a gente dizia que lá era fácil ganhar muito dinheiro.
Uma hora antes da partida, acompanhada pela minha mãe e pelo Miguel, cheguei ao antigo terminal de autocarros na Avenida Casal Ribeiro, cada um de nós carregando uma mala. As malas eram ainda halteres e não carrinhos com rodas. Entre o fumo dos escapes dos autocarros e a azáfama das bagagens que se enfiavam nos seus ventres, abertos como bocas escancaradas, malas e sacos de todas as formas e feitios, encomendas atadas com cordel, cheiros a tabaco e a fritos e a copos de três, ouvi a minha mãe repetir as recomendações e o envio de saudades, e dei vários abraços de despedida. Ao Miguel, disse-lhe que o amaria para sempre e era verdade, foi sempre verdade.
Num ápice, começava a minha primeira viagem para o estrangeiro já que a do retorno de Luanda não conta como viagem nem Lisboa como estrangeiro, muito menos a que fiz com seis meses no sentido inverso. Sentada entre emigrantes e familiares de emigrantes, velhos agora desocupados das canseiras da vida, adultos com a sisudez dos seus afazeres, crianças a crescer contra os assentos exíguos, mulheres com marido e filhos arrecadados na carteira ao lado do Bilhete de Identidade, jovens tresmalhados do futuro, lá ia eu com o passaporte bem guardado, Olha que se o perdes ficas metida numa bela alhada, avisara o funcionário da agência de Cascais, ali ao Largo de Camões. Primeiro carimbo, Espanha. Primeiro transbordo, Bilbau. Sem outras mãos que não as minhas para me ajudarem, a mudança das três malas de um autocarro para o outro foi tão penosa que perdi o saco do farnel. E ainda faltava muito mais de metade do trajeto e dois transbordos. O último foi em Annecy, uma cidade a duas horas de Genebra. Vendo-me tão aflita, um dos homens que viajavam comigo desde Lisboa ofereceu-me ajuda, Raios parta, que isto pesa como chumbo, o que levas aqui?, perguntou-me.
Cheguei a Genebra pela manhã, demasiado cansada para me espantar com o jato de água ou com o recorte das montanhas encimadas por neve. A minha irmã estava à minha espera num terminal de autocarros bonito e arejado. Cumprimentámo-nos felizes, o Coca entre nós, na barriga dela, a arquear em ponte o nosso abraço.
(Crónica publicada na VISÃO 1442 de 22 de outubro)