Estou na fila para entrar no supermercado há cerca de um quarto de hora, a escassos passos de mim os pardais vão-se afligindo por migalhas, os poucos carros no parque de estacionamento deixam à mostra o reticulado branco desenhado no asfalto. Acompanham-me na espera umas dez pessoas, a maioria com as caras já escondidas atrás de máscaras cirúrgicas. As tiras horizontais vermelhas, coladas no chão, estabelecem quanto temos de nos separar uns dos outros. Respeitando a distância de segurança, o extravagante cortejo distende-se imóvel, indo morrer na curva que desemboca nas traseiras do supermercado, um depósito de caixotes de madeira empilhados perto dos canteiros onde as lantanas debruam a secura do cimento. A fila, as máscaras, as tiras no chão contagiam o que me cerca, nada disto parece ser a sério. Fico confundida com as semelhanças entre este supermercado dos subúrbios de Cascais e o Smiths da W. Cheyenne Ave, a que costumava ir quando estive em Las Vegas, não falta muito para que o Bank of America e o 7 Eleven com os seus néones pasmados contra o céu surjam ali, do outro lado da estrada, no bairro social da Torre, trinta e dois prédios de um bege desgostoso e grafitado e varandas enjauladas, ou então mais abaixo, junto ao cemitério da Guia e aos seus muros tapa-morte, onde dois ou três condomínios aproveitam a proximidade do mar com paredes imaculadas de vidro.
O sol que aquece o alcatrão e refulge no metal dos carros estacionados apanha-me desprevenida, mas este calor em nada se compara ao da cidade arrancada ao deserto onde vivi grande parte do ano de 2008. Era o ano em que tudo ia mudar. Yes, We Can, eu gostava de olhar para o cartaz colocado logo à entrada do quarteirão do Smiths, Barack Obama, o primeiro Presidente americano negro ia criar uma nova América, e a nova América escancararia as portas de um futuro melhor para o resto do mundo. O meu entusiasmo infantil encalhava na incredulidade do Shane, o meu saudoso Shane, que, não compreendendo onde eu fora desencantar aquele pedaço tardio de sonho americano, respondia-me com um desalentado esgar, Nunca nada muda aqui. Falava-me depois da queda das Torres Gémeas, da guerra do Vietname, Nunca nada muda na América.
Apesar da sua desconfiança, o Shane acompanhou-me ao comício local da campanha do Obama no Children’s Memorial Park e não conseguiu apequenar o orgulho com que coloquei na lapela o crachá, Change We Need, centenas de pessoas em uníssono, negros, hispânicos, índios, american white trash, estrangeiros estonteados com os filmes de Hollywood e com as bandas de rock americanas, a América da Estátua da Liberdade e dos imigrantes de Ellis Island, do Watergate e do Direito de perseguir a felicidade. O Shane apontou um negro no meio da multidão e disse-me, Olha quem ali está. Não o reconheci, Sou má para caras, desculpei-me. O Shane sorriu, mas recusou-se a dizer-me quem ele era. Não me apeteceu voltar para casa no fim do comício, estava demasiado irrequieta, a América insuflava o balão gigante da esperança e eu estava lá, fomos comer frito pie a Santa Fé Station. Enquanto esperávamos por mesa o Shane perdeu mais umas moedas nas slot machines, nunca passava por uma sem jogar, Tem de se tentar, dizia, tentar a sorte é a única coisa de que não podemos desistir.
No dia seguinte o deserto tornou a ganhar à cidade e a temperatura subiu infernalmente. Não sou capaz de sair de casa com este calor, respondi quando o Shane me desafiou a acompanhá-lo ao seu emprego, Já sabes que não há melhor ar condicionado na cidade, brincou, Tanto trabalhas lá como aqui e assim podemos almoçar juntos e ir ao drive-in no fim do dia. Ao passarmos pela esquina da W Washington Ave com a N Rainbow Blvd, ele retirou a mão do volante e repetiu o gesto do dia anterior, Olha quem ali está. Era o negro do comício, como é que eu não reconhecera o homem que estava sempre especado naquele cruzamento, indiferente à inclemência do sol? Lá estava ele ensanduichado nos cartazes do American Express, suspensos por duas alças nos seus ombros, Don’t leave home without it. Desviei o olhar, envergonhada, ainda o semáforo não tinha mudado.
Quando vi nas notícias Donald Trump como candidato a Presidente dos EUA, ainda tudo tão longe dos 100 mil mortos da Covid-19 e dos milhões de desempregados, pensei estar perante a imitação humana de um cartoon ou de um dos mascarados estapafúrdios que percorrem a Strip, em Las Vegas, para alegrar os turistas. Receosa, liguei ao Shane, Como é possível que isto esteja a acontecer?, perguntei. Talvez tenha sido nessa conversa que ele me disse, O negro do American Express continua naquela esquina, lembras-te?
Na fila do supermercado, o segurança manda avançar a mulher que está à minha frente. Serei a próxima a entrar. Não é fácil acreditar que a gigantesca e efervescente cidade parou, quilómetros de corredores de hotéis e de casinos sem ninguém, o Mandalay Bay onde vi um homem chorar depois de ter perdido ao jogo a casa e as poupanças para a universidade dos filhos, a selva polinésia do Mirage com os pobres dos golfinhos e o arremedo do vulcão, o Venetian onde uns americanos do Wisconsin apostaram que eu era polaca, 147 mil quartos vazios e, no entanto, é para o parque de estacionamento do Cashman Center que são conduzidos quinhentos sem-abrigo, um parque como o que vejo aqui enquanto espero a minha vez. No lugar de estes poucos carros estacionados, pessoas. Nas imagens que os noticiários mostraram, em cada retângulo do reticulado, um corpo deitado com os seus haveres, peças de um jogo de tabuleiro de que desconheço as regras, um jogo que faz lembrar esse outro ainda mais macabro das valas comuns. Sou capaz de apostar que, algures, por baixo de uma dessas peças dois cartazes aconselham, Don’t leave home without it.
(Crónica publicada na VISÃO 1422 de 4 de junho)