Aproximou-se de mim logo que a conferência terminou. Chamo-me Margarida, disse, não concordo com a visão que tem acerca do pós-colonialismo, mas gostaria que me assinasse este seu livro. Escrevi, Para a Margarida, com amizade, Porto, 19 de fevereiro 2020. Às vezes nem eu concordo comigo, brinquei ao devolver-lhe o livro. Sorrimos. Posso dar-lhe um beijinho?, perguntou-me.
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A Neide ajeitou o cabelo em frente ao espelho da casa de banho, pouco antes de o avião aterrar. Estava bonita, o batom vermelho à Ava Gardner ficava-lhe bem. Regressava a Belo Horizonte de três em três anos e esforçava-se por impressionar os familiares e amigos, não fossem eles adivinhar a dureza da vida que tinha em Portugal. Enquanto esperava para sair do avião, consultou o telemóvel, tinha duas mensagens novas: a rede brasileira Claro dava-lhe as boas-vindas, avisando-a do preço do roaming, e a Margarida, a patroa da casa da Cedofeita, informava-a que a Sueli, a sua amiga e substituta nas limpezas, estava aprovada. As férias, as tão desejadas férias, começavam finalmente. Só era pena aquela tosse irritante, uma tosse alérgica que a fragilizava sempre que a ansiedade lhe estendia as garras. Regressar a casa perturbava-a, uma bobeira da sua cabeça como a que a fizera dirigir-se, já no aeroporto, para o controlo de passaportes, Desde quando é que ela era gringa para estar ao lado da hospedeira da United Airlines? Chá de limão com mel, aconselhou a hospedeira, quando a ouviu tossir. Neide não sabia inglês e não percebeu do que ela estava a falar. Olhou para a placa que a hospedeira trazia no peito e disse, Boa viagem, Laurie.
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Às vezes o Jeff e a namorada falavam em ir viver juntos. Especialmente nas noites em que o sexo sabia melhor. À luz do dia, a inércia ou a paixão insuficiente mantinham cada um deles no seu bairro de Newark. Mas quando o confinamento foi imposto, acharam melhor não ficarem separados. O Jeff mudou-se, então, para o apartamento que a namorada partilhava com a Laurie. Estavam os três a fazer um barbecue na varanda, o Jeff de volta da grelha, quando o Darrel telefonou, É o teu pai, disse a namorada do Jeff, levando-lhe o telemóvel.
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Confesso que a primeira coisa que senti foi alívio. Um alívio disparatado, o corpo compactua mais depressa com a esperança do que a razão. Acompanho as notícias da epidemia tentando pôr-me a par do que se vai conseguindo saber do novo vírus. O conhecimento avança às apalpadelas e no meio da avalanche de informações muitas vezes contraditórias, eis que nos revelam: para além da febre, tosse, dores musculares, dificuldades respiratórias, um dos sintomas da Covid-19 na Europa é a perda de olfato. Eu tinha perdido total e estranhamente o olfato quando estive com gripe em fevereiro, pensei até que não seria capaz de participar na conferência “Os filhos do pós-colonialismo”, no Porto, mas os medicamentos fizeram efeito e pude ir. Isto passou-se antes de haver registo de a epidemia ter chegado a Portugal. Se a minha gripe tivesse sido causada pelo novo coronavírus, talvez eu estivesse já imune.
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O Jeff pousou a tenaz sobre a grelha e atendeu o telemóvel. O pai disse-lhe, O teste deu positivo. De repente, a minha cabeça rebobina ruidosamente como uma cassete num daqueles leitores mais antigos.
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De repente. Entro no metro e sento-me junto à janela, num lugar que está vago ao pé do Francesco e dos seus amigos. Entretenho-me com o nosso reflexo escurecido no vidro. Não os consigo ouvir bem. Falam do segundo semestre de aulas que começará em breve.
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De repente. A vizinha do Daniele para de corrigir os exames quando ele bate irritado na parede, protestando contra a música alta. Já passa da meia-noite, Milão está quase toda a dormir, não é altura para se ouvir música. A vizinha pousa a caneta sobre o exame do Francesco e vai baixar o volume da aparelhagem.
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De repente. A irmã do Yanlin está aborrecida com a colega que ainda não chegou para a revezar no turno. Da ourivesaria até à creche do filho, tem de atravessar Wuhan quase de uma ponta a outra e já está atrasada para o ir buscar. Ainda assim mantém o sorriso ao ajudar o Daniele a escolher os brincos que oferecerá à mulher no regresso da viagem de trabalho.
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Finalmente. Um barulho ensurdecedor, uma confusão imunda. Solitário, num recanto do mercado gigantesco, o Yanlin está agachado sobre si mesmo como, no deserto, a criatura do Stephen Crane. Em vez do seu próprio coração, uma malga de sopa. Sobre o Yanlin, não os olhos do poeta, mas os do mundo inteiro. E os do morcego que ele se apresta a devorar. A boca abre-se-nos num grito que ele não ouve.
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O que não sei, invento. Para tentar perceber o que acontece, a extensão do que acontece, as implicações do que acontece. Para me meter na realidade. Ou para fugir dela.
Veiculo sempre tanta coisa que não controlo. Isso é, agora, descarado. Assustador. Nunca me senti tão próxima dos outros. O mundo era enorme, incontáveis os humanos e eu existia perdida dos que vivem no outro lado do planeta ou mesmo no meu país, na minha cidade, no meu bairro, na minha rua, na minha casa. Afinal é tão simples ligarmo-nos. E tão terrível apercebermo-nos disso desta maneira.
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O número de mortes nos Estados Unidos passa de 25 394 para 25 395. Ligam do hospital para o Jeff, O seu pai morreu.
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Por minha causa não é o mesmo do que por minha culpa. Ainda que uma coisa possa levar à outra.
O meu telemóvel assinala a receção de uma mensagem. Hi. Li a crónica em que falas de mim e gostava que tivesse outro final. O mal é magnético e consegue pôr-nos em sintonia, o bem ainda não desenvolveu essa capacidade. A humanidade já, antes, enfrentou o mal, mas nunca pudemos acompanhar-nos tanto como agora. É altura de o bem descobrir essa tal capacidade. Será pena se voltarmos a desencontrar-nos. E acima de tudo muito perigoso. Um abraço, Darrel.
(Crónica publicada na VISÃO 1416 de 23 de Abril)