Quantos mais anos vivo, mais certezas perco. Tornei-me adulta, e fui-me tornando velha, com a certeza de que não gostava do inverno. Até que em 2010 recebi um convite da Internationales Künstlerhaus Villa Concordia (IKVC) para fazer uma residência literária na Alemanha.
Anos antes, na Póvoa de Varzim, assistira a uma sessão do festival Correntes d’Escritas com o Juan Millás. A certa altura, ele queixou-se do frio que fazia na sala e pediu que trouxessem um aquecedor. Justificou-se, Quem passa frio em criança, nunca mais deixa de o ter. A maioria dos presentes sorriu condescendente, a fama do mau feitio do Juan Millás precede as suas aparições. Mas eu sabia do que ele estava a falar, também eu nunca deixei de ter frio desde o meu inverno transmontano de 1975.
O convite da IKVC era bastante tentador, um luxo para um escritor de um país como Portugal, onde, infelizmente, não há nada semelhante: viveria durante um ano em Bamberg, a única cidade alemã que não foi bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial e que é hoje património mundial, num estúdio com vista para as águas do Linker Regnitzam, e ainda me ofereciam uma digna bolsa mensal, passagens de avião, bilhetes para o mundialmente requisitado festival de Bayreuth e uma série de outras regalias. Não teria sequer a obrigação de apresentar ou produzir trabalho algum sobre o que quer que fosse, aquele que eu havia já feito justificava o convite, numa magnânima e pretensiosa convicção de que, mesmo que eu não escrevesse uma linha enquanto lá estivesse, viver durante um ano em Bamberg seria útil para o que eu criasse no futuro. Artistas ilustres haviam feito aquela residência, a Herta Müller, uma das minhas escritoras preferidas, estivera lá no ano anterior. Tudo me levava a aceitar. Havia, no entanto, um enorme senão: passar um inverno tão a norte. Quando expliquei à diretora da residência a minha pouca resistência ao frio, ela garantiu-me que, caso eu não me sentisse bem, poderia regressar a Lisboa sem qualquer penalização, No entanto, acredito que vai gostar do inverno alemão, disse.
A minha chegada a Bamberg coincidiu com a da primavera e pude sentir a diferença com que, por aquelas bandas, as ervas, as folhas, os pássaros acordam depois do temível inverno que eu desconhecia. Todos os seres me pareciam mais vigorosamente sôfregos, mais vivos. Os pequenos mercados espalhados pela cidade enchiam as ruas de cestas de frutas coloridas, as cervejarias alastravam em esplanadas com bancos corridos de madeira, os velhos vasculhavam a alegria nos seus passeios à beira-rio, os namorados deitavam-se na relva enrolados em segredos, e eu tentava encontrar rotinas na solidão de uma língua e de um país estrangeiros. Não tardei a descobrir o Oberer Leinritt, um caminho de terra batida paralelo ao rio que me levava a um magnífico parque natural, e depressa ganhei o hábito de o percorrer ao início da manhã. Ia sempre sozinha e raramente me cruzava com alguém. Uma vez no parque, rendia-me cabisalta ao céu de abetos, pinheiros, faias, carvalhos, bétulas, tentando perscrutar a luz que se moía contra as copas. Estar ali era estranhamente parecido com matar saudades dos familiares e amigos que deixara em Portugal. Na volta, os pés com o vagar do cansaço, sentava-me por minutos no sítio do aluguer dos botes, depois entrava no pequeno coreto do jardim da música, mais à frente pedia a bênção ao santo que havia sido esculpido numa pedra negra, atrasando o regresso a casa, onde uma frase me esperava, Mas na metrópole há cerejas. Assim começaria o romance que eu queria escrever, inspirado no que vivera ao deixar Luanda, aquando da descolonização. Sabia que o título seria O Retorno e ocupava os dias à procura da voz de um adolescente que eu tinha a certeza de existir, o Rui.
Quando o verão tornou os dias longuíssimos, as minhas rotinas já estavam estabilizadas, como exige a minha personalidade de natureza obsessiva. Tinha descoberto o sítio onde comprar o melhor pão, gostava de comer rabanetes com sal grosso no pátio da residência, adormecia na esperança de, na noite seguinte, ter novamente pirilampos a picarem-me o escuro. O Rui ia existindo e inexistindo.
No requiem outonal, as árvores encheram-se de amarelo e de vermelho, outras foram-se fazendo esquiços contra o céu de chumbo. Beleza, tanta beleza no mundo, meu deus.
E, num ápice, o frio de que eu tanto receava, chegou.
Comprei um bom casaco e umas boas botas, para além de gorro e luvas, e os meus amigos alemães ensinaram-me estratégias de sobrevivência. Devia acordar muito cedo para ter o maior número de horas de luz, beber Gluhwein, um vinho quente com especiarias, comer Bratwurst e mais não sei quantas qualidades de salsichas. Visto que não bebo álcool e nessa altura já não comia carne, restava-me acender velas para enxotar a pequenez dos dias. Munia-me, então, de livros e de filmes. Todos me desaconselhavam as caminhadas no meu amado parque. Alegavam que andar pela neve exigia experiência e resistência e eu nem tinha uma nem outra.
O primeiro nevão que caiu na cidade pregou-me um susto por me apanhar desprevenida num restaurante indiano perto da estação de comboios, a uns bons trinta minutos da Villa Concordia. No regresso a casa, enfiada no meu casaco à prova de tempestades, as luvas especiais e as botas impermeáveis, deselegantemente aparentada a um boneco de neve, apercebi-me de que o frio, encontrando pouco sítio por onde entrar no meu corpo, é quase indolor.
Atrevi-me a recomeçar as minhas caminhadas. Percorri primeiro uma pequena parte do Oberer Leinritt – havia sempre neve ou restos de neve – até ganhar confiança para me aventurar pelo parque, agora palco de uma outra natureza. Descobri-me feliz, tão feliz, a andar por dentro daquele silêncio branco, um silêncio com corpo, sólido, deixando pegadas num chão que todos os dias estendiam de novo só para mim. Fui indo longe, cada vez mais longe, um monte de neve guardava o santo dentro de si, no beirado do coreto, empertigavam-se pássaros de peito encarnado que julgava existirem apenas nos postais de Natal, estalactites de gelo colavam umas árvores a outras. Um dia estarreci: à minha frente, vindas do nada, pegadas adentravam pela zona mais secreta do parque. Reconheci-as de imediato: eram do Rui. Fazendo minhas as pegadas dele, lá fui, destemida.
(Crónica publicada na VISÃO 1396 de 5 de dezembro)