A vossa mãe fugiu com o vosso pai, viveu amancebada com ele durante anos, foi falada em todo o lado, até em Bragança se soube, o vosso avô só lhe deu autorização para se casar quando ela engravidou, bisbilhotou-nos a tia Céu, a mulher do irmão do meu pai, o tio Augusto. Ou talvez tenha sido uma das suas filhas, a Fátima ou a Ermelinda, as nossas primas mais velhas. Os quase cinquenta anos que passaram desde esta revelação foram tornando tudo incerto. Menos o choro da minha irmã. Eu fiquei calada. Não por ser mais corajosa, mas por me faltar idade para perceber que aquelas palavras também significavam que a nossa mãe – que nos educava no temor a deus e ao pecado – tinha sido uma galdéria.
Estávamos na marquise da casa da tia Céu e do tio Augusto, em Luanda. Distraída do abalo que acabara de provocar, a tia Céu pediu a uma das meninas negras que empregava a troco de teto, comida e lições da moral e religião dos brancos, Traz-me as couves para migar. Tia e primas acrescentaram, então, à vez, considerações acerca da história da minha mãe, A família dela queria o pobretanas do vosso pai bem longe, Se caísse para o lado, não caía no que era dele, Como se não bastasse ser um mulherengo, Que o diga a noiva que ele deixou no altar e a outra que, com o enxoval já todo pronto, nunca mais lhe pôs a vista em cima, A vossa mãe teve sorte em não ter sido usada e deixada como as outras, Uma mulher séria não foge de casa dos pais com um homem dez anos mais velho. A conversa decorria sem que a tia Céu desviasse os olhos da tarefa a que se obrigara, sentada no seu banquinho de madeira. Nunca a vi fazer outro trabalho que não o de migar couves e descascar leguminosas e tubérculos. Eu invejava a mestria com que as mãos dela libertavam das vagens feijões, ervilhas, favas, despedaçavam batatas, cenouras, mandiocas, reduziam as couves a fiozinhos verdes que criavam um novelo malcheiroso. Terminada a tarefa, uma das meninas negras levava o alguidar esmaltado para a cozinha, enquanto a voz da tia Céu as ia guiando da marquise, A água tem de ferver, É preciso esfregar bem as batatas, Os feijões cozem à parte, A couve só entra no fim, Não deixem a água a correr, Vá, mexam esses pés, tirem essa preguiça do corpo.
A marquise – aquilo a que agora chamo a marquise – era o sítio mais utilizado na casa, uma grande divisão quadrangular, colada à cozinha. Além da mesa de madeira onde se tomava o pequeno-almoço, havia espreguiçadeiras de tirinhas de borracha, a máquina Singer onde a prima Ermelinda aprendia o ofício de costureira, o poleiro do Jacó, o papagaio que todas as manhãs gritava, Jacó quer café, Jacó quer café, e a porta de acesso às traseiras, que se apresentavam como um xadrez desconjuntado de arrecadações, anexos e baldios, de onde crescia pelos prédios um emaranhado de escadas de incêndio, quais trepadeiras metálicas. Situado na civilizada Baixa de Luanda, o apartamento do tio Augusto e da tia Céu constituía, para eles, uma vitória em relação aos meus pais, que moravam no cu de Judas, para lá da linha de comboio. Por seu lado, os meus pais desdenhavam do centro da cidade, onde os edifícios atrofiavam horizontes, expulsando do céu pássaros e estrelas, não deixando sequer espaço para mangueiras, abacateiros ou qualquer outra árvore daquela terra tão fértil. Desdenhavam especialmente do prédio dos meus tios, já que a empresa de importação de bacalhau que laborava no rés do chão, mesmo por baixo deles, lhes empestava a casa. Isto para não falar das assoalhadas que consideravam escuras como castigos. O meu pai e o meu tio, pior do que inimigos, eram irmãos: tudo lhes servia para competirem.
Antes dessa tarde, eu já sabia que o meu avô materno, um empedernido lavrador, tinha querido casar a nossa mãe com o filho de outro lavrador com riqueza semelhante à sua para assim juntarem os minguados haveres que a terra dava, já sabia que o nosso pai fora ameaçado com uma espingarda, Se te torno a ver nesta aldeia, descarrego-te isto no corpo, mas nem eu nem a minha irmã sabíamos o que acontecera depois, não sabíamos que, não lhes tendo sido dada autorização para o casamento, a minha mãe fugira, apaixonada, não se importando de viver em pecado com o meu pai e ainda menos se importando que todos soubessem disso. No final dos conservadores anos cinquenta do século passado, a fuga de uma rapariga de dezassete anos seria um escândalo em todo o lado, mas era inimaginável numa pequena aldeia de Trás-os-Montes. No entanto, tinha acontecido. Com a minha mãe. Não se podiam fazer aquelas coisas, explicou-me a minha irmã, as mulheres que as faziam tinham um nome tão feio que ela se recusava a pronunciar em relação à nossa mãe.
Nessa noite, já no nosso quarto, deitadas na cama de casal em que dormíamos, foi decisão da minha irmã fazermos segredo do que nos fora contado. Explicou-me, a cochichar, que se os nossos pais soubessem zangar-se-iam com os tios. Para além disso, seria terrível que os miúdos do bairro e da escola, assim como os pais de uns e de outros, começassem a olhar para a nossa mãe de outra maneira.
Obedeci à minha irmã, sem conseguir explicar-lhe que tinha um entendimento diferente da fuga da minha mãe. Se lho tivesse dito, ela responder-me-ia que eu era muito nova, que ainda não sabia como as coisas se passavam. Tinha razão. Só que depois de eu ter crescido tudo, a vergonha, no que à fuga da minha mãe dizia respeito, continuou sem dar mostras de si. Pelo contrário, a história fascinava-me cada vez mais.
Hoje, estou convencida de que não fugimos de um sítio, mas para um sítio. Para a quimera que nos estende a mão. É sempre para a quimera que fugimos. Se não, deixamo-nos estar. Enquanto desconhecemos o que não temos, o que temos nunca nos é insuportável. Ainda que estejamos mal e que nos maltratem. Recusarmos a promessa do que sabemos possível e desejamos, isso sim, é insuportável. Então, é preciso ter coragem e fugir, fugir, fugir. Fugir para… Que o verbo se relacione mais frequentemente com o sítio de onde fugimos do que com aquele para onde fugimos deve-se à vontade de mantermos secreta a quimera. Tem de ser essa a razão.
Quando nasci, a minha mãe já se moldara à mulher que cabia no nosso quotidiano. Se os ares de África não a trouxessem sempre doente, se engordasse uns bons quilos, quase nada a distinguiria das vizinhas. Mas a outra mulher, a que fugiu, continuava escondida nela, de certeza. Uma mulher como as dos filmes que eu via no cinema, nas tardes de domingo, uma mulher capaz de pegar numa arma para defender dos malfeitores a sua casa, de dançar em cima de uma mesa da taberna, de cavalgar desabrida por desfiladeiros, de percorrer sem pestanejar o salão de baile do palácio sob o olhar de todos. Ou de fugir de casa dos pais para viver com o homem que amava. Essa mulher também foi minha mãe, também é minha mãe. Também ela me criou. Nunca deixei de procurá-la na minha mãe do dia a dia. E sempre a fui encontrando. Encontros fugazes. Mudos. Sorrimos uma para a outra e tenho a sensação de que ela me pisca o olho.
(Crónica publicada na VISÃO 1392 de 7 de novembro)