Tenho participado recentemente numas iniciativas da Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos. São umas iniciativas de angariação de fundos para manter a confraria ativa. E o dinheiro serve para coisas práticas, utilitárias, funcionais; obras no telhado da igreja, preservação do museu, coisas assim para manter a engrenagem a funcionar. As iniciativas passam por juntar a música popular moderna ou, pelo menos, recente, minimamente recente, caso o termo “moderno” não seja o mais hábil para o caso; juntar a música recente do Porto, dizia, ao amplo, generoso e extenso manancial de História da cidade. Têm participado o Rui Veloso, o Sérgio Godinho e eu, do lado da música popular urbana da cidade, cujos novelos são atados pela mente e oralidade brilhantes do Joel Cleto, que nos conta as histórias da Circunvalação, do Centro Comercial Dallas, do Rivoli, da Ponte Dom Luís e da minha Foz, que já foi cidade e já teve Câmara Municipal, com base nas letras das canções e da sua sabedoria sem fim. Tem sido uma experiência fascinante, e julgo que não é só para nós, os participantes das iniciativas. Mas o que mais me fascina é a antiguidade da própria confraria. O nosso anfitrião é o José Carlos, que é quem organiza as iniciativas, junta as pessoas e carrega em si o ónus de manter a engrenagem da confraria de Massarelos a rodar. O posto, o cargo, a patente que o José Carlos ocupa é o de Juiz Provedor. E o primeiro Juiz Provedor da mesma organização, da mesma associação, chamemos-lhe assim, foi o Infante Dom Henrique. Significa que cabia ao ínclito e egrégio marinheiro zelar pelo funcionamento da engrenagem, a mesma engrenagem, coisas práticas, utilitárias, funcionais, obras no telhado da igreja, as mesmas frugalidades, as mesmas (outras) preocupações, o mesmo São Telmo, a mesma freguesia de Massarelos, a mesma rampa com as mesmas argolas de musguenta ferrugem para atar as cordas dos mesmos (outros) barcos, desde 1394. São centenas e centenas de anos. Poder contribuir com o meu tão prosaico e insignificante mister para a manutenção de um coletivo de gente bem-intencionada e generosa que já existe há 627 anos contribui com uma certa dose de profundidade para o meu tão superficial ofício. Faz parte da minha consciência olhar para o mundo e ver, desde logo, toda a sua permanente impermanência. Toda a inconstância de tudo se me revela constante a cada olhar. Sinto especial comoção em olhar para as pedras do Cais das Pedras, o rio Douro, as pessoas, os cafés, os Ubers, os rabelos de passeio, as teias que vidram nas janelas e esperam um barco parecido com elas, o José Carlos à procura de novos caminhos para andar, os 100 anos da morte do Georges Brassens, e o Georges Brassens dentro das músicas do Sérgio Godinho dentro das músicas do Rui Veloso dentro das minhas, há um prenúncio de morte e de vida em cada átomo de cada coisa, vamos todos no mesmo barco rumo a sabemos lá quantos portos, sabemos lá qual Porto, mas não nos resta senão esse enorme e quase impossível salto de fé que é confiar.
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