A Sara disse-me que eu tinha de ir com ela ao concerto, a Bruxelas, que o concerto era na zona da expo; a Sara disse que tínhamos de estar lá cedo, que me ia buscar a casa de carro para estarmos lá às 18h mas só às 21h começava o concerto; a Sara disse-me que eu precisava de instalar uma aplicação para fazer o download do certificado da vacina, que se eu quisesse podia fazer um teste antigénio gratuito na entrada se ainda não tivessem passado os 14 dias, que a outra amiga era contra as vacinas e ia fazer o teste também. Disse-me que tinha comprado bilhetes para uma “bolha de 3”, que se podia escolher estar numa bolha de 3, de 4 ou de 2, ou comprar um bilhete individual mas assim não ficávamos juntas. No caminho pediu-me para ser a copiloto, porque até fila marcada no parque do Arena tínhamos de ter.
Na entrada havia polícia, voluntários, enfermeiros, grades para ordenar tudo e todos em filas, por pessoas vacinadas, pessoas em fila de espera para o teste, pessoas que já trazem o teste pcr feito, pessoas com certificado em papel ou no telefone. Eu percorro todas as etapas com a vontade com que faço tudo ultimamente com a Sara: obediente mas sem perceber porque estou ali. Há dois anos que não saio de casa, não vou a um café, trabalho 12 horas por dia e a Sara sabe que não posso pagar este bilhete. Como se me ouvisse, ela responde, se não for eu, não sais de casa, e eu queria muito ir a este concerto contigo, quero mesmo oferecer-te este bilhete. Duas horas mais tarde, ultrapassadas as barreiras e os check ins, entramos numa praça ao ar livre onde um palco montado está maravilhosamente enquadrado com o Atómio lá ao fundo. Todos sem máscara reencontram amigos, celebram o fim do verão, procuram os seus lugares criteriosamente numerados, ouvem e falam mais português de todos os sotaques do que qualquer outra língua. Quando foi a última vez que senti este sabor a festa no ar?
Dirijo-me para o balcão de um bar improvisado e pergunto se têm caipirinha. Não têm. Só vendem mojitos ou cerveja belga. Tenho de sorrir. Enquanto pago três bebidas, uma senhora ao meu lado aborda-me:
‘Oi, moça, você não pode pegar para mim qualquer coisa para eu beber e eu pago para você? Olhe aqui, eu tenho dinheiro, tenho euro, pode ser qualquer coisa, hoje tenho de celebrar este concerto, pôxa, mas eles não estão aceitando cash, só cartão, já foi tão difícil chegar aqui, bilhete não dá para comprar na bilheteria, só tem online, nossa, eu achei que nem ia conseguir, e daí esqueci o meu cartão, e vim sozinha, mas tinha de vir, né? Sabe eu vivo com um monte de gente do Brasil que não queria vir, outras tendências políticas, né? E aí eu disse a mim mesma, deixe que eu vou sozinha, quero me sentir viva outra vez… cheguei a Bruxelas faz dois meses ainda não tenho emprego mas eu vou dar um jeito de me virar, para o Brasil é que eu não volto de jeito nenhum, deixem que eu vou dançar até meu corpo ficar Odara, tomara que o corpo do mundo inteiro fique Odara, que a cuca da gente fique Odara, que tem muito louco por aí pirando por muito pouco enquanto metade do mundo anda a morrer de fome, né? Sabe o que quer dizer Odara? Na língua Yorubá da Nigéria quer dizer: Estar bem. É, o Caetano foi com o Gil em 77 ao 2º Festival Mundial de Arte e Cultura Negra, em Lagos, na Nigéria, e ficaram lá um mês para assistir a todo o evento histórico, que reuniu mais de 1500 participantes de mais de 70 países. É… Caetano não é só música… Você me desculpe, mas eu ouvi vocês lá na entrada esperando pela vossa amiga fazer teste na entrada, sua amiga é belga, né? E vocês portuguesas, e a sua amiga é contra as vacinas, né? E aí, no Arena eles dão teste de graça e eu até achei graça, né, à conversa, porque eu venho de um país onde a gente está lutando para fazer quarentena, onde a gente está lutando para não morrer todo o dia de covid, minha mãe entrou num hospital com uma dor de rins já não saiu mais porque apanhou lá dentro covid, estamos todos a ser cobaias de um monstro e vocês com medo de perder a liberdade porque se organizarem para vacinar todo o mundo e aí eu pensei, que legal, né? Ter medo de perder a liberdade de não se vacinar e ainda assim não ficar doente, bebendo mojito que só dá para pagar com cartão, eta que isso é que é país rico! Uma pessoa sai de casa e passa horas se organizando para ir ver um único homem de 79 anos a tocar no seu violão! Não é lindo? A gente passa o ano fechado em casa e depois faz tudo isto só para acabar nessa praça linda, ao ar livre, sem máscara, a ver gente se abraçando, se beijando, gente a ser feliz e a respirar ar pelo nariz? Hoje estou no Brasil, no Brasil onde eu queria estar, não no Brasil que temos agora. Obrigada moça, pelo chope, Deixe eu pagar a você por transferência, deixe que eu encontro você no insta ou no face, e aí você me manda o seu número, que legal, obrigada, olhe bom concerto, né?’
Estamos na última fila. Todos gritam Fora Bolsonaro até Caetano entrar no palco. O concerto começa. A primeira canção é o Menino do Rio. O aplauso é imenso mas, claramente, vai ter de haver Sampa. À minha frente um casal beija-se, ao meu lado um grupo de raparigas já se levantou para dançar no corredor sem cadeiras. Vêm-me lágrimas aos olhos. Esta foi a primeira música brasileira que mostrei e traduzi para o Christian. Lembro ainda, e há quanto tempo não me lembrava, que foi com ele que vi a primeira vez Caetano ao vivo, no Coliseu, há quase 20 anos. Lembro-me, mesmo, mesmo, sem querer, que foi hoje, exatamente hoje, há doze anos, que Christian morreu, vítima de um tumor cerebral, e que Transa foi dos últimos álbuns que ouvimos juntos.
Surpreendo-me por me ter esquecido. Surpreendo-me por estar ali, sem saber o que estou a comemorar. Penso que já passou muito tempo. Desde a primeira vez que ouvi Caetano, desde que saí de Portugal, desde o início da pandemia. E apercebo-me, à quinta música, Um índio, que somos todos sobreviventes. Passamos todos por muito e estamos todos ali. E somos felizes. Porque vivos. Oiço: Deixe eu dançar… e os corpos não aguentaram mais a distância que prometeram cumprir. Uma massa de gente se deslocou para a boca de cena e aí ficou. Ao terceiro encore, Caetano diz: eu já não cantava na frente de um público faz dois anos… e aqui ainda mais lindo porque é ao ar livre, as pessoas não estão de máscara, porque respeitaram o protocolo enquanto era preciso, eu entrei de máscara, esqueci de tirar, nossa , quase que tudo isto começa a afetar todo o mundo, mas é uma beleza ver todo o mundo assim… E o concerto acabou. E ninguém queria ir embora até o corpo ficar Odara.