Dois mil e vinte foi uma lista de coisas por fazer. Metade cancelada, metade adiada, tudo contido. Sendo inevitável que desejemos a desforra no ano novo de vinte e um.
Obviamente, as coisas não mudam com a passagem de um dia, de um mês ou de um ano. Mudam a cada minuto, de forma mais ou menos (in)visível, como o crescimento das unhas, do cabelo, das folhas das árvores e das rugas no canto do olho.
Chegou a vacina, a esperança renova-se, mas sabemos que ainda temos um longo inverno pela frente e (pelo menos) uma primavera de transição, até que as coisas comecem a melhorar.
Temos de ter presente que os reencontros não serão todos de uma vez, que o reajustamento das coisas será lento e progressivo e que não será, certamente, como sair da prisão e correr para o abraço. Será contido, como o ano que passou, até que possa deixar de ser, devagarinho. Teremos de cultivar muita maturidade para tanta parcimónia e muita paciência para o conta-gotas de liberdades a que seremos sujeitos.
Até porque, além de toda esta contenção, haverá crise. Económica, social e provavelmente política, visto que todo este confinamento resulta em muito despedimento e bancarrota. Já para não falar das questões de saúde, mental e física, que deixamos para depois e que virão como uma fatura bem pesada no fim. Mas ainda assim, vinte e um tem tudo para ser melhor do que vinte. Até porque não é difícil.
Retomando algum otimismo, gostaria de encetar uma espécie de lista das coisas que queremos muito fazer depois deste pesadelo passar e, começando pelo básico, diria que estar vivo é sempre um bom começo. Sendo que, depois desse desejo primitivo de sobrevivência, estar vivo com saúde e rodeado de quem se ama seria melhor do que ganhar o jackpot do Euromilhões. E que, passando a coisas mais práticas, conseguir sustento e conforto é essencial, como poderão concordar. Mas eu queria era ir para a lista das coisas mundanas, a lista dos pequenos prazeres quotidianos, alguns dos quais nem sabíamos prazeres, mas que passarão a ser.
Estou a falar de ir a um concerto e ficar corpo a corpo, apertada na plateia. De tocar nos botões do elevador, do semáforo, do multibanco e não pensar nas viroses que podemos apanhar. Estou a falar de sentar na mesa de um bar à pinha e pousar o copo numa mesa melada e cheia de cascas de amendoim. De viajar e aproveitar os desconfortos que as viagens normalmente acarretam, sem que usar máscara durante as horas de voo seja um deles. Estou a falar de abraçar os amigos, de dar beijinhos. De ter as crianças de colo em colo, misturadas com os adultos. De encher a casa de gente. De dançar até ao amanhecer numa pista ruidosa e escura. Estou a falar de não pensar em todos os gestos e nas suas consequências. De não contar as pessoas presentes e a distância entre elas. De não ter reuniões por Zoom, jantares por Zoom, para começar a distinguir o trabalho do lazer e, sobretudo, a interagir com as pessoas (no trabalho e no lazer) sem ter um ecrã como interface. Estou a falar de provar a comida alheia, partilhar um copo, dar uma passa no cigarro do outro, partilhar o batom com a amiga, sem paranoias e nojentices. Encher salas de espetáculos, passar o Natal com a família toda, ir ao spa e experimentar tudo o que tenha vapor, bolhas de água e coisas do género, voltar a ver a cara do dentista, deixar de usar máscara. Estou a falar de ser livre.
Se no final de vinte e um pudermos ter metade desses privilégios, que toda a vida demos por garantidos, daqui a um ano poderemos estar muito agradecidos. E não será aos deuses. (Num tempo em que grassa tanta descrença, tanto negacionismo e tanta banha da cobra, é preciso reforçar o óbvio) será à ciência e à sua capacidade de encontrar soluções para os nossos problemas, mesmo quando parecem esmagadores.
Por isso mesmo, quando tocarem as doze badaladas do nosso réveillon confinado, brindemos à ciência e, por ela, à saúde e à liberdade. E que dois mil e vinte e um seja um ano de reencontros, mesmo com tantos caquinhos por colar e tanta luta ainda pela frente.
(Crónica publicada na VISÃO 1453 de 7 de janeiro)