Achei terrível andar na escola. Não sei que detergente ou lixívia é que se usava nas casas de banho dos estabelecimentos de ensino onde eu andei, mas o cheiro era o mesmo, e volta e meia passo num sítio qualquer que cheira a isso, a esse produto, a esse amoníaco, a essa floral fragrância e, instantaneamente, estou na casa de banho do corredor da Sala das Joaninhas, corredor cravejado de desenhos infantis e cabides de pendurar anoraques (eu dizia anoraque) e mochilas, casa de banho de urinóis em ponto pequeno e retretes sem tampa, e o cheiro, aquele cheiro, a angústia de ter 8 anos e andar no Colégio Luso-Francês, as minhas cólicas diárias, podia ser esse como podia ser outro qualquer, o cheiro desse detergente em concreto a prender-me inclemente, sem dó nem piedade, a esse ter andado na escola, ter de ter andado na escola, esse Eterno Retorno. O olfato tem isso. Um singelo microssegundo em que a pessoa inala qualquer olor que lembra qualquer coisa, e pronto, está lá inteiro. Achei terrível ter de andar na escola e lembro-me das séries de domingo. Porque domingo era dia de escola amanhã. O aroma do famigerado amoníaco abeira-se dos micronervos das minhas narinas e logo as unhas da irmã Aurora a cravarem-me a dobra da antélice auricular, estavas a arreliar o teu colega e eu, que não sabia o que é que queria dizer arreliar, acatava, é porque então estaria a arreliar o colega, e as séries de televisão de domingo, véspera de semana de aulas, o MacGyver, A Bela e o Monstro, mais tarde o Dear John. Dear John, dear John, by the time you read these lines I’ll be gone, e eu a pensar que quem agora se punha a andar era eu, voltava todas as sextas, aos domingos, a seguir ao Dear John, desaparecia para parte incerta onde o chão não cheirasse ao produto de limpeza a que cheiravam, cheiram, hão de cheirar os chãos das escolas, os chãos das escolas onde eu andei, colégios, aliás, porque eu andei mais em colégios. Depois, escola; depois, universidade mas sempre o cheiro, o eterno cheiro. Achei terrível andar na escola e a minha vida começava no fim de cada ano letivo. A minha vida começou no fim de todos os anos letivos. Acabei de vir da minha corrida e passei junto a uma casa que, duma janela aberta, daquelas que nos dão pelo joelho, janela que serve de escotilha para qualquer cave cujo bafio se combate com constante arejo e muita passagem de esfregona embebida em detergente, veio uma baforada impiedosa desse cheiro, acontece de longe a longe, uma esteira invisível que serve de sentença imediata de, pelo menos, algumas horas de clausura nesse cárcere da memória, Dear John, dear John.
Palavras-chave:
