Volta e meia dou por mim a pensar o que será feito do guarda-chuva que alguém deixou para trás, jazendo inerte e esquecido num dos enormes bancos corridos da Igreja Matriz de Ermesinde, na semana passada, quando até lá me desloquei por ocasião de uma missa de sétimo dia. O guarda-chuva era bom, de tecido preto e pega castanha, de um castanho que dizia bem com o tom do banco corrido. A minha intuição imediata foi fazê-lo corresponder a uma senhora, isto porquê?, porque se tratava de um dos bancos da frente, mais próximos do altar, e ali em Ermesinde são as senhoras que mais se aproximam da palavra de Deus Nosso Senhor, como das pombas de cúpula de catedral, as mais famintas, as que mais ousam na imprudência primitiva de se abeirar de mão humana, a mão que asperge as primeiras migalhas de pão, só que no caso das senhoras velhinhas de Ermesinde não se trata de imprudência nenhuma, trata-se de fome e sede, fome do corpo e fome do sangue de Cristo, daí ocuparem quase sem exceção o banco da frente. Contudo, porém tratava-se, à uma, de um guarda-chuva de aparência masculina, até mais pela pega do que por outra coisa qualquer, à outra, tratava-se de um esquecimento, e são os homens tradicionalmente mais achacados a estas coisas do olvido material. O que é certo é que se foi mulher, a esta hora o artigo deixado para trás já terá recolhido a qualquer que seja o seu lar. Já estará enfiado de nariz para baixo numa jarra de porcelana junto dos da sua igualha, por trás de alguma porta de entrada com batente dourado em forma de pata de leão, nalguma moradia geminada dali das imediações da Igreja Matriz. Conheço bem essas casas, conheço bem essas jarras onde repousam os guarda–chuvas. Nasci numa dessas casas. A questão que aqui se levanta é a de se dar o caso de ter sido um homem. Chegou a casa sem guarda-chuva, foi devidamente admoestado por uma esposa das que não se esquecem de coisas, grunhiu que sim, de olhos no chão, que com certeza, volto lá amanhã para resgatar o objeto esquecido, sabendo enquanto grunhia que o mais provável é que isso não viesse a acontecer, acontecerá um dia mas onde estará nessa altura o guarda-chuva, isto porque as igrejas, as catedrais, as capelas, as matrizes, as sés, são templos que devem os seus mais de dois mil anos de vida a senhoras que por eles zelam com esmero de mãe, esmero de avó, que limpam, substituem velas, contam moedas, passam batinas a ferro, fazem bolos de laranja e peditórios, resgatam guarda-chuvas deixados para trás e os soltam no circuito insondável dos caminhos das coisas perdidas. O homem que o deixou pensa que era só deixá-lo estar quieto no sítio, que ele o haveria de recuperar. Mas a senhora que o resgatou pensa diferente, pensa assim: é melhor guardar isto senão ainda se perde e é pena, o guarda-chuva é bom. Só que nesta vida em que nada permanece, tudo é fluxo, tudo muda, tudo é transitório, nem os guarda-chuvas esquecidos em bancos de igrejas a essa lei escapam e eis que o animado artigo será avistado por alguém que o decretará órfão de dono, vai para dar, dar a quem, existem exércitos de humanos que nos últimos dois mil anos são responsáveis por ver que as igrejas não rebentam com excesso de coisas deixadas para trás e as senhoras vão expurgando do interior das igrejas casacos, guarda-chuvas, despojos de dois mil anos de vidas, e agora o guarda-chuva da pega castanha foi atirado para esta roda dentada voraz que é o mundo e com ele girará até que se solte uma vareta, duas, e a cinzas tornará, como diz e bem o pároco de Ermesinde.
(Crónica publicada na VISÃO 1446 de 19 de novembro)