Olhar para uma pessoa, um cidadão ao calhas, e tirar pela pinta. Fazer um retrato, pode ser, por exemplo, aquele senhor de boina e bochechas rosáceas, que anda de uniforme, todos nós andamos de uniforme, eu tento não andar de uniforme e isso também é andar de uniforme, assim é com o cidadão de boina e bochechas rosáceas, quase que nem era preciso sondar do pescoço para baixo, mas claro que tudo por ali abaixo condiz, até às botas usadas, coçadas, à feição do pé, de tanto gasto. A infância no grémio dos pauliteiros de Monção, aos oito já vendia cervejas Cristal ao balcão, malgas de verde tinto daquelas brancas com a risca azul, as unhas negro-azuladas de manusear o fruto da videira e do trabalho do homem, a vinda para Gaia, o café no Candal, aqui as francesinhas são feitas como deve ser, o Rio Ave-Beira-Mar em silêncio, no canto superior esquerdo do café, a teimar num longo e penoso empate a zero, isto do futebol é tudo uma gatunagem, é o que é. De repente, o senhor da boina passa e lá se vai a fantasia, muda-se a paisagem, a aguarela fica a meio. A senhora de sapatos de tacão alto, vermelho-cereja, o cabelo cor de pelagem de orangotango, não é desprimor, a cor é essa mesmo, é cor de orangotango, provavelmente tem um cabeleireiro no Campo 24 de Agosto e encara a pilosidade craniana como um reclamo luminoso, usa o cabelo como quem grita “marque já” em néons garridos de persuasão estética. O marido, sem altura de espírito para compreender estas nuances de estilo, trabalha em seguros e entretém-se em casa com as ferramentas (a ferramenta, quem é que me andou a mexer na ferramenta?), como é cabeleireira sabe tudo o que interessa saber sobre as últimas dali do quarteirão, que mais é que interessa saber para lá dos confins limítrofes das novidades do quarteirão, entretém-se a saber e a dar a saber dos negócios, dos amores, das traições, das quezílias e das querelas da filha do João da Nora que foi para Lisboa, do Pereira do Talho, diz que o Viriato da Drogaria, que também vai emigrar, parece que vai abrir em Campanhã. Passa a senhora de cabelo cor de orangotango, e ali está um cidadão bastante impenetrável, anda de uniforme antissonda, a minha antena não penetra. São camisolas como as minhas, cobrindo t-shirts como as minhas, daquelas lisas que dizem BASIC na etiqueta, calças e sapatilhas como as minhas. Alto, que tem relógio. Ok, pelo relógio vê-se as horas que passou no Café Velasquez, a casa dos avós na Avenida dos Combatentes, o pastor-alemão no jardim, as roupas ao dependuro com molas às cores, o apartamento dos pais em Damião de Góis, as aulas de ténis no Vigorosa, as idas aos jogos nas Antas com o avô, o avô a dizer que era o único estádio do mundo onde se entrava pela máquina de lavar carros de uma estação de serviço, o que fará este cidadão anónimo de uniforme anódino permanecer um mistério. Mas um jovem adulto, com este uniforme, este relógio, estes avós na Avenida dos Combatentes, estes pais em Damião de Góis e estas idas ao estádio das Antas, ainda no tempo em que se levavam bandeiras que pareciam estandartes de guerra para os jogos, não poderá, de forma alguma, escapar ao desígnio inevitável, implacável e inexorável de se chamar, óbvia e indubitavelmente, Ricardo.
(Crónica publicada na VISÃO 1442 de 22 de outubro)