O Tom Jobim concedeu uma entrevista muito rica, fértil e esclarecedora ao jornalista Roberto d’Ávila, em 1981. A certa altura, a conversa converge (conversar e convergir hão de ter sido a mesma coisa, o mesmo verbo, lá atrás, de onde quer que as palavras brotam) para a tristeza crónica que em criança o fez entregar-se sem retorno ao teclado velho e descarnado de um piano antigo. Isto em pleno verão, em pleno Rio de Janeiro, em plena alegria, em alegria plena. E o sábio Jobim lança uma teoria para a qual o próprio adverte como sendo inconsequente: “Ninguém toca bem piano sem ser aleijado. Ninguém troca uma praia de mar azul, uma garota bonita, uma bola, por um quarto escuro, um casulo de trevas onde há um piano. O Sérgio Mendes teve osteomielite, tuberculose nos ossos. Aprendeu a tocar engessado, a ver da janela as outras crianças a brincarem na praia. É preciso alguma coisa muito forte para que uma pessoa se negue à realidade e fique a tocar piano. Um moço sadio, porque haveria ele de se negar à vida? Há muitas formas de o Mal servir o Bem.” No meu caso, há de ter sido o leite. Bebia-se leite, muito, muitas vezes, sempre, porque havia muito, porque sobrava, porque leite é juventude, anúncios todos os dias na televisão, palhinhas em espiral, modernas e apetecíveis, pelas quais jovens modernos e apetecíveis sorviam tão salutar néctar. Eu também não quero ser inconsequente, mas só em 2016 é que o leite deixou de ser juventude e eu nunca mais lhe toquei; foi-me, enfim, diagnosticada uma alergia qualquer à caseína, a gosma que faz engordar jovens vitelos e que, pelos vistos, no meu caso, acabava em cólicas intestinais e sinusites permanentes. Quando eu era pequeno, era-me absolutamente impossível participar na vida, nas brincadeiras, então fiz como o Sérgio Mendes, pus-me a tocar, no meu caso viola, para sempre, a ver a vida da janela. Eu não tenho opinião sobre nada. Ou, aliás, tenho sempre todas as opiniões, umas contrárias às outras, acho sempre qualquer coisa e simultaneamente o seu contrário, e sempre pelas mesmas razões. Só sei que não gostaria de pertencer a qualquer comissão de ética que tenha de decidir sobre a intervenção genética que irá eventualmente eliminar todas as maleitas que criam estes aleijados todos. Ou antes: gosto muito de não pertencer a tais comités de gente sábia. Porque, por um lado, o progresso parece-me óbvio e natural, e uma natureza capaz de parir um ser capaz de parir tais ideias, capacidades tais que permitam ir ao gene eliminar alergias, psicoses, osteomielites e tristezas, é uma natureza que sabe muito bem o que está a fazer. O Hemingway, o Mário de Sá-Carneiro e o Victoria Woolf sofriam daquilo que hoje se chamará transtorno bipolar. O Lincoln parece que tinha aquilo que hoje se chama síndrome de Asperger. O Jobim padecia de nostalgia. Se a natureza chegou ao ponto de permitir que o macaco nu, na sua marcha inexorável de progresso, lhe meta as patas peludas nas moléculas mais ínfimas, ela lá saberá. Por outro lado, como seria um mundo sem nada disto? Uma existência vale muito porque aquilo que fica de fértil, fecundo e enriquecedor é para o Todo. Uma Humanidade de gente sã já não será para mim, e de certa maneira ainda bem. Um mundo sem cólicas, sem osteomielites, sem Hemingways e Sérgios Mendes ou sem nostalgias será um mundo perfeito. Não é que eu tenha muito: mas seria também um mundo onde eu não teria ninguém com quem conversar. Ninguém com quem convergir.
(Crónica publicada na VISÃO 1440 de 8 de outubro)