Trinta anos depois voltei ao jardim zoológico, agora na condição de mãe. Neste interregno tinha ficado com a sensação de que grande parte dos animais não estava hospedada convenientemente. Lembro-me de ser criança e de sentir que estava tudo errado com as jaulas dos felinos. Exíguas, forradas a azulejo de casa de banho e incompatíveis com a sua natureza selvagem e fugidia. Não tinham por onde correr ou esconder-se e ficavam ali a andar em círculos, entre o tédio e o desespero.
Com um certo medo de que pouco tivesse mudado, comprei os bilhetes e em boa hora. Gostei de ver a renovação e de saber que não só a fauna prosperou como a flora cobriu os recantos com exuberância. Gatos e pavões à solta, boas condições para os animais e muito bom gosto na forma como os habitats (outrora jaulas) estão dispostos e arquitetados. Só uma coisa continua a fazer-me confusão neste conceito de zoo, fazendo pesar a ideia de clausura (ainda que as acomodações sejam impecáveis) – manter primatas em cativeiro.
Concordo que seja por uma questão de identificação e que manter primatas ou outros animais em cativeiro tenha exatamente a mesma gravidade. Mas é inevitável sentir que somos feitos do mesmo molde, que eles (por antropocentrismo) estão num patamar diferente e que, ao vê-los ali confinados, se torne mais claro que estamos a visitar uma espécie de prisão (ainda que espaçosa e arejada, com espaços verdes e boa comida).
Pode ser também que seja estúpida a diferenciação e que nasça apenas do meu incómodo com macacos, em geral, e grandes primatas, em particular. É difícil explicar por palavras, mas basicamente os macacos fazem-me impressão. Os pequenos parecem pessoinhas pequeninas, com mãozinhas perfeitinhas e rápidas, muito destras. E os grandes têm uma quantidade de expressões faciais tão vasta que, nas suas nuances, estamos permanentemente a descobrir as nossas.
Os pequenos parecem-me crianças endiabradas, que podem saltar-nos para o colo a qualquer momento para roubarem o que levamos nos bolsos. Os grandes parecem-me anciãos de olhos tristes e molhados, que sabem sempre mais do que nós, mesmo que já não se lembrem. Os pequenos parecem-me sempre imponderáveis. Os grandes parecem-me sempre tristes. E parece-me sempre mal mantê-los ali atrás de um vidro, cativos, sem poder praticar a imprevisibilidade ou a sabedoria.
Olhá-los arrepia-me fisicamente tanto quanto me causa um estremecimento existencial. É um calafrio corporal e filosófico, que revira as entranhas (da carne e do espírito) em reação ao encontro. Parece que, quando me chego ao vidro, vejo o nosso reflexo sobreposto neles. A identificação assoberba, dá medo, é como conhecer um ancestral que vive milhares de anos para nos lembrar de que somos bichos, crianças e velhos, sempre bichos, elétricos ou pensativos, sempre bichos, sujeitos a ficar cativos, infantilizados de qualquer forma. E naquela condição de menosprezo, em desrespeito pela majestática condição de primata, nós, humanos (na nossa soberba), mostramo-los aos filhos, sem pompa ou respeito, como mais um animalzinho qualquer.
Ainda por cima, para uma criança de um ano e meio, ver animais ao vivo, um boneco de plástico, um poster A2 ou um desenho animado é mais ou menos a mesma coisa. Ou se impressiona com a escala (como com as girafas e os elefantes) e com o movimento (como com as lontras mergulhadoras do oceanário), ou então nicles, não se extrai reação ou brilho de olhar arregalado.
Que falta de respeito para com aqueles gorilas imponentes, de sobrancelha franzida, a mastigar lentamente o tempo de cativeiro. Que falta de apreço pelos orangotangos de olhos doces, com um meio-sorriso-triste de palhaço pobre. Que falta de sentido histórico. Que falta de consideração para com os chimpanzés, primos primatas, com que partilhamos 99% do ADN.
Decididamente, o respeito pelas outras espécies devia estar no 1% que não passou para este ramo da família.
(Crónica publicada na VISÃO 1439 de 1 de outubro)