Chegaram à estação das camionetas, Rosa Irene e o pai, o pai Belarmino, frio e justo, amável na sua fria justeza, na sua justa frieza. O pai Belarmino demonstrava a sua afeição pela filha através de atos como aquele que teve quando chegou à estação e perscrutou o ambiente num gesto giratório e discreto de cabeça, como aquelas sondas dos submarinos nos filmes antigos de espiões de guerra. Com firme e justa frieza, dirigiu-se a um homem que lá estava, barba branco-prata de capitão Iglo, pose reta de quem levou uma vida reta até àquela idade avançada e pediu com firme e fria justeza se lhe olhava pela filha durante o caminho. Marto, assim se haveria de desvendar o nome do homem. Um estorvo para Rosa Irene. Ainda em plena serra de Montesinho, a camioneta a serpentear aqueles montes afora, o enjoo, a ansiedade, o zelo com que o velho Marto cumpria a sua função muito para lá do razoável, Rosa Irene sentiu o quente da sua condição de mulher sujeita aos ciclos embaraçosos da natureza a escorrer-lhe por entre as coxas, numa súbita e indisfarçável vergonha repentina, apanhando-a desprevenida, pois não seria a altura. E o velho Marto ali, ombro com ombro. A viagem demorou um conjunto interminável e incontável de horas, com os dois condutores a revezarem-se sem parar, enquanto um se levantava, o outro segurava no volante em andamento, Rosa Irene sem se poder levantar para sair nas poucas paragens que a carripana concedia aos seus auspiciosos viajantes. O enjoo, a ansiedade, o zelo do velho, o monte sem nome do Couto da Aparecida cada vez mais longe, cada vez mais para trás no espaço e no tempo: compensava. A chegada a Paris dava-se pelas traseiras. Trás-os-Montes aspergia forasteiros que chegavam à Cidade- Luz como os moços de estrebaria se aproximam dos cavalos para limparem o estrume com um ancinho, ou como os lixeiros se aproximam de um restaurante para esvaziarem os caixotes: pelas traseiras, as inóspitas e desilusórias traseiras. A camioneta despejou os indesejados viajantes em Champigny-sur-Marne, uma aldeia em lata. Compensava. No apeadeiro estava a tia Olga Irene, num automóvel que serviria como portal mágico de acesso à Paris dos livros do tio Ernesto. A vida em Paris acabou por revelar-se encantada. Rosa Irene aprendeu francês a trabalhar como au pair em apartamentos de pé-direito alto e tetos trabalhados, um francês desembaraçado e prático de que se nutriu junto das crianças de quem tomava conta. Conheceu o Rui numa peça de teatro, na qual ambos participaram, numa glamorosa estreia na Academia do Bacalhau de Paris, e o tal Rui era do Porto, o Porto era uma espécie de Paris também. Casaram-se e acabaram por vir para Portugal, para o Porto, moram hoje em dia no Monte dos Burgos, a vida lá se fez, passou-se bem. Contou-me isto tudo a própria Rosa Irene, e tudo me haveria de contar a propósito dum monte que nem era monte, que nem nome tinha, que não era senão uma bolha de terra que ali estava, junto à casa em cuja soleira a Rosa Irene me contou a sua história, talvez porque os meus olhos pequenos e caídos se tenham iluminados por momentos, quando Rosa Irene apontou com o queixo e me disse ali é o monte onde eu costumava subir para gritar, e claro que isso me interessou mais do que tudo. Como é que Rosa Irene haveria de voltar ao Couto da Aparecida, cujo nome se deve a uma menina do Porto de há 200 anos que assim se chamava e que Rosa Irene odiou com todas as fibras do seu ser, por se ter posto debaixo do padre Barreiros, por ter dado origem aquela estirpe daninha e danada, como é que o monte haveria de chamar Rosa Irene ao fim de tantos anos, isso haveria eu de perceber pelo som. É que Rosa Irene gritava no cimo do monte, sem reparar na altura que os montes também gritam. Podia ter ido para Marte, não interessa: durante este tempo, todo o monte também a chamou aos gritos, os montes também gritam, e este monte sem nome gritou baixinho, durante estes anos todos, assim, como quem chama: “_______________”.
(Crónica publicada na VISÃO 1438 de 24 de setembro)