No dia em que completou 11 anos, 2 de novembro de 1973, a pequena Rosa Irene subiu ao monte aonde costumava subir para gritar. Era um monte que não tinha nome, uma pequena bolha de ebulição ligeiramente mais protuberante que outras bolhas afins, não era propriamente um daqueles montes com nome, como por exemplo Monte de Ermida, Monte da Viúva ou Monte dos Abrunheiros. A terra era assim aos papos, ali no Couto da Aparecida, assim se chamava a aldeia, o lugar, a freguesia, não sei agora, nem sei se era assim que se chamava o pedaço de terra esquecido onde os montes se assemelhavam a bolhas de sopa a ferver muito, mas, se tinha sequer nome, era um nome assim do género: Couto da Aparecida. Aparecida era uma rapariga órfã que mudava camas e fervia baldes de água no Seminário dos Meninos Desamparados, no Porto, na década de 1850, por quem o padre Barreiro se deixou tomar de amores e cujo fruto de uma união marcada a ferro quente pela mácula do pecado, quando se tornou demasiado visível aos olhos de toda a gente, não deixou alternativa senão uma vida de desterro no lugar mais esquecido e remoto que o mapa pudesse oferecer, um lugar–nenhum para lá dos montes, dos rios, para lá de Vila Real, para lá de Boticas: o fim do mundo. Emissário da Providência na terra, que o era, providenciou casa, amparo, apelido, todo um conjunto de condições para que Aparecida e criança pudessem medrar por lá, por onde até então nada nem ninguém havia ousado medrar. E assim fizeram, a vil e abjeta semente infame metastizou como erva daninha até 1973, até a pequena Rosa Irene gritar, como quem reza com toda a força, no cimo do monte sem nome, eu não sou daqui, eu não sou daqui, quero ir-me embora, eu não sou daqui. Não queria ser dali, onde as velhas tinham 35 anos, dente sim, dente não, cabelo branco e costas curvadas em direção à terra que lhes reclamava sachadas permanentes, se queriam cebolas tinham de sachar. Não queria ser dali, sentia filiação mais plena nos livros que lia na clandestinidade, que um tio que se chamava Ernesto e que era analfabeto e que trabalhava na estação de Vila Real lhe trazia na Páscoa, era como se os lesse através dos olhos literatos da sobrinha, cobrava-lhe apenas o preço de que ela lhe contasse a história resumida no fim, assim ficava a pensar no Júlio Verne e no Eça de Queiroz enquanto fazia lá o que quer que as pessoas que trabalhavam na estação de Vila Real nos anos 70 do século passado faziam. Sempre se entretinha, compensava a deslealdade para com o cunhado, que dizia que os livros haveriam de dar cabo da cabeça da garota. E deram mesmo. Eu não sou daqui, eu não sou daqui, gritado com toda a força longe, para que ninguém da família pudesse ouvir mas que os melros, os rios, os montes, Deus portanto, se sensibilizassem, se Sensibilizasse perante tal infortúnio, que cedessem, que Cedesse de alguma forma, se Deus está em todo o lado, então até mesmo ali, por mais improvável, haveria de estar também, que culpa tinha ela de que essa Aparecida tivesse de desaparecer, não foi ela, Rosa Irene, que se meteu debaixo do padre. Aos 17 anos, anunciou que iria para Paris. Ai que desonra para a família, pensas que Paris é já aqui, Paris fica mais longe daqui do que este fim do mundo fica do mundo, se não querem que seja desonra, então o senhor meu pai que me leve à camioneta, pareceu firme a vontade, pareceu sensata a ameaça, foram para a camioneta, Rosa Irene haveria de ver o arco de triunfo antes de ver o mar. Mas antes ainda há a questão do velho Marto.
(continua)
(Crónica publicada na VISÃO 1436 de 10 de setembro)