As férias na praia nunca são suficientes. Aliás, já aqui escrevi que acalento o sonho de um dia alugar uma casa na praia sem data de regresso, só para perceber quanto tempo precisaria para me fartar daquela vida mansa. O que ainda não vos disse é que gostaria de ficar mesmo depois do verão ir embora. Tenho uma espécie de fascínio por terras de veraneio e gostava de saber o que é lá passar o inverno. Gostava de perceber como é ficar tempo suficiente para já lá estar aos primeiros sinais de estio e aproveitar as praias desertas. Quase como uma recompensa exclusiva, para quem superou a prova de dedicação dos longos e silenciosos dias de inverno, num sítio em que quase tudo fecha e muito poucos ficam quando acaba a festa.
Gostava de me tornar local, conhecer os que pertencem ao lugar por onde os outros apenas passam. Garimpar aquelas lojas que vendem chinelas e boias insufláveis à procura de uma cesta bonita ou de um tapete de juta, para criar algum conforto na casa alugada à temporada, inevitavelmente desajustada nos dias frios e demasiado frugal para ser apropriável.
Há algo de simultaneamente deprimente e poético nesse desajuste. A casa, como aliás a vila, criada apenas para servir as necessidades dos meses de verão, e totalmente desencontrada do resto do tempo. Como se fosse uma espécie de avesso. Como se fosse uma espécie de carro alegórico, festivo e iluminado nos dias de Carnaval e rapidamente sinistro e obsoleto, da quarta-feira de cinzas em diante.
Como seria passear no aldeamento deserto, ver as flores do oleandro desaparecerem, ver a chuva cair nas piscinas vazias, passar na montra da gelataria fechada e ir comprar o jornal à tabacaria onde só há títulos em alemão ou inglês? O que faria eu de todo esse silêncio? Como viveria esse exílio?
Acho que a razão do meu fascínio por essas estâncias, além do facto de viverem em função da praia como eu própria, é que parecem acometidas da síndrome da insularidade, mesmo que não sejam ilhas. E eu também já vos disse aqui que tenho uma atração pela insularidade e uma vontade de me tornar ilhéu até conhecer os humores e as idiossincrasias da ilha em que resolver ficar.
É que tenho a ideia de que a insularidade nos obriga a viver com o que existe e a tirar o melhor proveito. Contar com os talentos de quem faz parte da pequena comunidade. Inventar fruição e passatempos com os recursos que estão disponíveis. Conhecer a fundo cada palmo de terra acessível e fintar o vazio existencialista e a claustrofobia, criando horizonte onde os outros teimam em ver quatro paredes. Considero que seria uma prova ao meu otimismo desembestado e uma ótima oportunidade para treinar o músculo da gestão dos recursos. (Pelo menos, nas vezes em que fiquei mais tempo, passei a elogiar a roupa da loja dos chineses e a achar bonitos todos os homens morenos mais ou menos bem parecidos com quem me cruzava. Se isso não é ver o copo meio cheio, ainda estou para saber o que será.)
Quantas vezes não me apeteceu perder o voo e ficar… Escrever um livro, num quartinho com janela para o Estreito de Bonifácio. Ficar no Faial para participar nos concursos de artes plásticas de Porto Pim com o Tomás. Abrir um pequeno negócio em San Frascesc como uma daquelas italianas que decidiram não voltar para casa. Alugar uma casinha de risca azul perto do Cabo Sardão e sentir todos os dias aquele cheiro a caril que vem das casas dos nepaleses que trabalham nas estufas.
Assim sendo, se um dia destes eu desaparecer como aqueles homens que saem para comprar cigarros, não me procurem no rebuliço. Estarei numa esplanada, escondida no meio de um grupo de reformadas holandesas, a fazer sopa de letras enquanto espero que o minimercado da vila abra depois da hora da sesta.
(Crónica publicada na VISÃO 1433 de 20 de agosto)