A única vez de que fui vítima de abuso de poder e de violência policial (sem ser em contexto de manifestação) foi em Barcelona. Foi toda uma história que não importa contar, mas que culminou com a polícia a chamar-nos “porcos africanos” por sermos portugueses. Essa microexperiência serviu para eu perceber o quão privilegiada havia sido sempre por não temer a polícia, por nunca ter sentido a revolta de ser ameaçada por quem é suposto defender-nos e o desamparo de, depois disso, não termos a quem nos queixar.
Claro que, enquanto mulher, tinha aprendido já na pré-adolescência que a rua é um espaço de potencial assédio e que andar na rua sem medo é um privilégio masculino. O espaço público não é um lugar seguro para todos. O homem (branco) é o dono do terreno (mesmo que não tenha consciência disso) e, por isso também, consigo (apenas) imaginar como é ser minoria, como é ser racializado, como é ser sempre o estrangeiro (ainda que no próprio país), sem direito a sentir-se à vontade (leia-se em liberdade) no espaço comum.
Ignorar isto é já de si um privilégio, mas é precisamente o privilégio que nos permite, tantas vezes, estar na posição de sermos ouvidos ao falar do tema e ao denunciar o problema. E é também por isso que me sinto na obrigaçãode ser uma aliada da luta antirracista.
Sei que temos um passado colonial muito recente, que ainda há muitos tabus a respeito e que ainda reina entre nós o lusotropicalismo. Sei que muitos pais e avós estiveram na guerra colonial e que as feridas e traumas ainda estão abertos. Sei que temos livros de História enviesados e eurocêntricos, que reforçam a subalternização das narrativas negras, e que tudo isto leva a que impere o negacionismo e o ressentimento. Mas quando se fala em privilégio branco, isso não quer dizer que a vida tenha sido sempre fácil para quem não é negro; significa apenas que a cor não atrapalhou mais e que o caminho foi menos esconso e injusto. Quando se diz “vidas negras importam”, isso não quer dizer que as outras importem menos, da mesma forma que, quando os bombeiros correm para apagar um incêndio numa casa, eles não estão com isso a menosprezar todas as que não estão a arder.
Negar a existência de uma coisa, só porque não a sentimos, chega a ser sobranceria e falta de compaixão. Não deixando de ser curioso ver tanta gente de esquerda, tantos democratas, tantos representantes de Abril a engrossar o coro dos que minimizam o problema do racismo em Portugal, dizendo que ele existirá apenas em atos isolados de pessoas preconceituosas, sem conceberem a existência de racismo institucional e recusando-se a considerá-lo enquanto sistema histórico, político e social, calcificado e entranhado na república.
Os mesmos democratas e humanistas que desprezam as causas identitárias, acusando os seus defensores de instigação à reação e ao divisionismo, sem consciência de que as lutas que travaram toda a vida não são menos identitárias (como a operária, por exemplo) e de que serão manifestamente insuficientes, se não forem capazes de reconhecer que as lógicas de exploração não atingem todos da mesma forma e com a mesma intensidade (sendo necessário, sim, agitar bandeiras específicas).
Os mesmos democratas e humanistas que se enfurecem para defender as estátuas e a conceção cristalizada da História, mas que são os primeiros a assobiar para o lado quando o tema é a violência policial racista. As agressões parecem doer mais no bronze do que na carne (negra). Os mesmos democratas e humanistas que acham anacrónico criticar o nosso passado esclavagista e colonial, mas não acham anacrónico elogiar os nossos grandes feitos imperiais. Pois, ao que parece, o anacronismo só o é do lado da crítica.
Os mesmos democratas que se esquecem que o 25 de Abril é devido, em grande medida, aos movimentos de libertação das ex-colónias, porque foi a sua estoica resistência que levou à gota de água que fez o MFA dar o murro na mesa. Devemos-lhes muito, historicamente, e é tempo de ter a humildade de reconhecer isso. É tempo de ouvir, de aprender mais e de desconstruir a cultura que pariu o racismo estrutural que tem vitimizado tantas e tantas gerações.
(Crónica publicada na VISÃO 1431 de 6 de agosto)