O Hip Hop mudou a minha vida e, por ele, sempre fui especialmente grata à comunidade negra. O rap, como forma de amplificar as suas denúncias e reforçar a sua identidade, nasceu no viés contracultural numa América especialmente racista e opressiva, e para pacificar os bairros em guerra permanente. A cultura criou-se para unificar e reforçar o orgulho identitário. Tendo servido desde sempre de megafone para quem, da margem, esteve sempre muito distante do discurso dominante.
Desse exemplo, construí a minha forma de estar no rap. Enquanto mulher, decidi pôr a minha escrita ao serviço das minhas causas e, em especial, do feminismo.
Usando a mesma lógica de reforço identitário e de denúncia, com a mesma atitude orgulhosa e incisiva, tão subversiva quando ostentada por um afrodescendente quanto por uma mulher (e ainda mais se for negra).
O rap ensinou-me a não pedir licença para dizer o que penso e fazer o que faço. Aprendi isso desses homens e mulheres negras orgulhosos, que ouvi em cassetes e CD durante a minha adolescência. Foi a lição mais feminista da minha vida, apesar de ter sido absorvida no seio de uma cultura muito masculina e em muitos aspetos misógina. (Estes processos não são lineares).
Obviamente que, não sendo o meu lugar de fala, não me cabe a mim desfraldar a agenda e o ponto de vista da comunidade negra. Ainda assim, tenho tentando contribuir para a luta antirracista, trazendo algumas das suas temáticas para a minha escrita. É o caso do tema A Mulher do Cacilheiro que toca em muitas questões ligadas ao dia a dia das mulheres afro-portuguesas, como o peso do passado colonial, a dupla jornada, a segregação espacial e a precariedade. Ou do tema AFROdite do disco Língua Franca, onde se eleva a beleza e a majestade das mulheres negras. E ainda Madrepérola, em que presto homenagem a muitas mulheres negras talentosas que me inspiram.
Não existem estatísticas por indicadores étnicos em Portugal, mas sabemos que se eu fosse negra teria de ter contrariado muito mais probabilidades para ter as mesmas ferramentas e as mesmas oportunidades, e sobretudo para conseguir ter uma carreira longeva no rap no nosso país. E a prova cabal disso é o facto (injusto) de eu ter sido a primeira mulher a lográ-lo, quando, muito antes de eu começar, existiram dezenas de mulheres negras e tentar e a desistir.
Por isso mesmo, é com satisfação que vejo a consolidação da tendência inversa, num momento em que são os rappers negros quem tem mais sucesso e mais público em Portugal. Nomes como Wet Bed Gang, Plutónio ou Nenny são recordistas de streaming e visualizações, num país em que a música negra foi olhada de lado até há bem pouco tempo, e em que os intérpretes brancos tinham a vida mais facilitada. É sinal de que a cultura Hip Hop, sendo plural e apropriável por todos e todas, continua a estar primordialmente ao serviço do(s) discurso(s) da comunidade negra, sendo o seu megafone e o seu estandarte. Boas notícias!
No meu percurso, e sendo uma privilegiada, foi muito importante ter colaborado com o SOS Racismo na adolescência, ter-me politizado na esquerda, ter estudado ciências sociais, ter amigos negros, seguir de perto talento negro e colaborar artisticamente com negros ao longo dos anos. Foi muito importante ter ouvido vozes negras, lido livros escritos por negros, visto filmes feitos a partir do ponto de vista negro, porque, do “condomínio fechado” que é o privilégio branco, é fácil ignorar a circunstância do outro e menosprezar o seu sofrimento. O conhecimento permite desconstruir a formatação cultural fortíssima que nos condiciona a todos e que justifica tanto negacionismo. (Continua…)
(Crónica publicada na VISÃO 1429 de 23 de julho)