Olhar para um prédio, o prédio que se vê do meu jardim, e ousar na indelicadeza de entrar por cada uma daquelas janelas adentro, alma indiscreta que adentra sem pudor cada um daqueles domésticos cárceres. Naquela janela, uma senhora velha, pés inchados, avó, mãe e sogra, o programa da tarde sem som, o mangustão e seus efeitos milagrosos, os sorrisos, a árvore das patacas, as cantoras, a alegria vespertina que asperge em todas as direções de dentro daquele aparelho televisor e a senhora com as canelas inchadas, pés inchados mergulhados numa bacia azul com água morna com sal, sal dos Himalaias, diz que tem propriedades, sal cor de rosa, onde já se viu, no meu tempo sal era sal e isto parece mas é remédio dos ratos ou remédio dos escaravelhos, na volta querem-me matar, bem faziam eles. Na janela ao lado, um jovem empresário, jovem empreendedor, jovem adulto de colarinho azul, ou branco, não sei, para yuppie é um jovem, se tivesse sido apanhado pelo telejornal a roubar galinhas ao vizinho em noite de Lua cheia era logo homem. 39 anos, jovem. Se o apanham numa daquelas falcatruas financeiras retiram-lhe logo o jovem e aplicavam-lhe pena imediata, pronta e irreversível sentença de ser automaticamente despromovido a “homem”, lá se ia o jovem, ele que se ponha a pau. Tirou a gravata, o casaco e os sapatos e pôs as pantufas, nem sonha que o vizinho do outro lado da rua consegue ver estas coisas através das paredes, calçou as pantufas, “roupa de casa”, e está neste momento a googlar “terrenos Costa Vicentina bom preço”. A filha reclama por uma opinião urgente relativa ao penteado do pequeno unicórnio de longas crinas azul-celeste e o imberbe yuppie lá cede um ríspido aval, diz que lindo, que lindo, também terá essa capacidade de ver sem sequer olhar e agora googla “Tesla preços”, há uma inquietação que lhes vem de dentro, yuppie e filha, filha e yuppie, filha escova crinas, pai googla por sinais exteriores de riqueza, motivações comuns. Naquela janela, placa a dizer “vende-se”, cortina corrida, uma senhora de bata/avental azul sem mangas sobe no elevador com a missão de mudar as partículas de pó de sítio num frenético e vigoroso espanar, há de correr a cortina para entrar luz, há de abrir as janelas para entrar ar. Pode ser que ar, luz e pó espanado se unam algures no confins do Grande Todo numa espécie de oração, como que convocando algum eventual comprador, a placa como quem grita “comprem-me, comprem-me”, algures nos subúrbios de Maturín uma professora acaba de decidir que chega de Venezuela, vai emigrar sozinha, googlou “calidad de vida Europa ranking” e começou por baixo, o dinheiro não estica, Estónia não, Grécia também não, Portugal porque não, Lisboa não, o dinheiro não estica, Porto, vou para o Porto, chega deste calor e desta podridão que me esturricam os miolos, guio um Uber, pode ser que conheça alguém. A velha rosna alto que a água da bacia arrefeceu. O yuppie encomenda da Amazon um daqueles livros que ensinam a esticar o dinheiro em dez passos, a filha conversa com o unicórnio e a senhora espana, espana, o apartamento imbuído de ar fresco e luz, espana, espana, só para de espanar quando avistar no céu o avião da venezuelana a descer para o Sá-Carneiro.
(Crónica publicada na VISÃO 1428 de 16 de julho)