A última vez que eu saí, assim sair-sair, foi no dia 11 de março, para uma reportagem da RTP que foi filmada no Largo de São Domingos, no Porto, depois na Ribeira e depois na Maia. Julgo que ainda não passou na televisão. Nessa altura, já era de bom senso ficar em casa, salvo exceções daquela natureza, pois de trabalho se tratava. Do dia 12 em diante, fiquei em casa. Faz hoje 53 dias; 53 dias preso a uma existência rotineira que em quase nada foge àquela que já era a minha, nos dias sem compromissos com concertos e afins. Preso às minhas quatro pessoas preferidas neste mundo, a uma casa com um pequeno jardim e um estúdio na cave. Preso a um dia a dia rasteiro, contido, pequeno. A fazer as pouquíssimas coisas que eu realmente gosto de fazer. Música, correr, praticar aquela tão malvista domesticidade. Os meus dias são assim, já eram assim. São dias tidos, no senso comum dos filmes, das séries e das revistas de lifestyle, como plebeus, rasteiros, pequenos, por cumprir. Calha de a minha alma, talvez por subversão, ser bastante afeita a esta pequenez. Nestes 53 dias, tenho ido ao limite, ao radical da minha domesticidade. Tenho sugado os sucos do tutano da espiral duma rotina em cristal. Tenho sido mais eu, assim, a minha alma aponta para isto mais do que para outra coisa qualquer. Porque é no terreno fértil desta mesmice pachorrenta que os sonhos florescem, que a criatividade pode realmente fluir. E, de repente, vem o calor. Ontem foi dia de calor. Foi dia de ir aos arrumos buscar a piscina insuflável, vasculhar a garagem em busca do compressor, reunir as tropas para levar a cabo tão hercúlea empreitada. Indiana Jones no encalço do Santo Graal. Além disso, era Dia da Mãe, convencer a pequenada a empreender em trabalhos manuais em sigilo máximo. Michael Douglas em O Jogo. Tentar conquistar a pulso meia hora para dormir uma sesta com a Ana a seguir ao almoço. Leonardo DiCaprio n’ A Praia. Tentar passar os dedos pelo piano ao som da Patrulha Pata e da Porquinha Peppa. Adrien Brody n’ O Pianista. Tentar escrever estas linhas num telemóvel, enquanto três crianças-hiena me perseguem com olhos de famélica e predatória ameaça. Hemingway em plena feira de Sanfermin. Acho que não sou compatível com tamanho grau de aventura e adrenalina constantes. Não dá para fixar também o clima, numa temperatura branda que não aqueça nem arrefeça? Não me dou com tanta instabilidade.
(Crónica publicada na VISÃO 1418 de 7 de maio)