A ideia de ficar em casa, em isolamento social, por tempo indeterminado, poderia fazer-nos pensar que esta temporada seria de abrandamento. Cortar as saídas, a parte externa do trabalho, o contacto com o frenesim da cidade seria meio caminho andado para fazer uma espécie de retiro espiritual, em que o silêncio teria mais espaço para se espraiar e o quotidiano poderia começar a amolecer. Havia, apesar do contexto distópico, alguma romantização desse desaceleramento. Uma ilusão de contemplação, como se todos tivéssemos as janelas viradas para o horizonte e acedêssemos à eremitagem apenas por estarmos em casa.
Não sei se é pelo medo de ficarmos a sós connosco ou com os nossos. Se é medo da solidão. Não sei se é pelo Medo com M grande. Da existência, da morte, da doença, do escuro ou do silêncio. Se é o nosso pânico da inutilidade. Essa culpa judaico-cristã de quem não sabe ficar sem fazer nada, por achar que isso merece castigo. Não sei se é tique de cria do capitalismo, com ânsia de produtividade permanente. Na senda de capitalizar em cima da crise, porque crise é oportunidade e blá-blá-blá. Mas ninguém consegue estar quieto.
Os que estão em teletrabalho têm de gerir um desassossego de chamadas, emails, videoconferências, ao mesmo tempo que fazem malabarismos para entreter a prole e garantir as tarefas domésticas. Mas quem não tem, por privilégio ou infortúnio, parece estar também a cumprir um expediente rigoroso e uma apertada agenda de atividades online.
Há sobreinformação, sobrenotificação e sobrecontacto. As nossas casas parecem feitas de tábuas e, como numa inundação, as infiltrações jorram por todas as frinchas até estarmos submersos.
Lemos todos os artigos, ouvimos todos os especialistas, analisamos todos os gráficos e assistimos a todas as conferências de Imprensa da DGS e do Governo. Fazemos aulas de ginástica online com hora marcada, almoçamos e jantamos em videoconferência, vemos concertos, entrevistas e comédia em direto nas redes sociais. Contactam-nos por telefone, SMS, WhatsApp e Messenger, email, mensagem direta no Instagram ou no Twitter. Por Facetime, videochamada de WhatsApp ou Facebook, hangout e Google Duo, Zoom, Skype ou Houseparty. E mesmo quando estamos offline, virados para dentro de casa e centrados no que de mais concreto e material temos em redor, resolvemos cumprir uma lista infinita de tarefas e de pequenos projetos, arrumações e consertos, bricolage e labores, experimentações culinárias ou atividades de jardinagem.
Ora eu, mesmo tendo trabalho pendente e um bebé pequeno, já consegui ordenar a estante dos meus livros e dos brinquedos dele, arrumar o escritório minuciosamente e organizar as fotografias que estou agora a colar, uma a uma, num álbum de lombada respeitável. Já fiz dois bolos de chocolate (razoáveis) e um bolo de banana (fracassado). Já escolhi e arrumei toda a roupa de bebé que deixou de servir (desde o nascimento) e todos os acessórios de puericultura que ficaram em desuso. Já emoldurei várias coisas que tinha guardadas e tenho as limpezas em dia. Nutro ainda a ambição de fazer uma escolha no meu armário, de arrumar a despensa e de fazer backups no computador.
Sinto que a quarentena é daquelas frenéticas aulas de aeróbica em cima de trampolins ao som de música techno, em que nunca tive coragem de entrar. Sobretudo no que diz respeito às solicitações para participar em coisas, rubricas, correntes ou iniciativas. Escolher um livro, sugerir um filme, fazer um texto sobre isto, um vídeo sobre aquilo, entrar numa corrente de fotos assim ou de posts assado, usando o hashtag xis ou identificando a página ípsilon. Ufa, meus amigos, a pandemia do século não é definitivamente o coronavírus! É o bom e velho cansaço que, por desgaste, atualizou o epíteto e agora dá pelo sofisticado nome de burnout.
(Opinião publicada na VISÃO 1415 de 16 de abril)